Sanfona dum raio
Antunes Ferreira
Os instrumentos são muito diferentes. Não cavaquinho, sanfona, ferrinhos ou bombo. Não senhor. Há costureiras, há granadas de mão, há G3, há bazucas, há morteiros, todos afinados para a guerra mas desafinados para a música. Sons completamente diferentes, diapasão diferente, decibéis diferente e por diante. Mais a mais, sem pauta, sem claves, sem colcheias.
Estão, se calhar, admirados de eu saber tudo isto no que ao musical diz respeito. Mas, se eu vos disser que alem de instrumentista e bailador, também era ajudante do regente, então percebem. Até já substituíra o maestro por algumas vezes. Não foi muito difícil. Com batuta devia ser muito mais; mas, nestas andanças das danças não se usa o pauzinho.
Ah, é importante que diga para completa elucidação de todos vós, que a minha conversada, a Maria dos Anjos, também faz parte do grupo. É bailadora e muito gira. Fica-lhe bem o vestido de noiva que usa nos espectáculos. Roliça, alta, bonita, tem tudo o que uma mulher deve ter e nos sítios do costume. Não conto mais nada, senão lá volto à pívea aqui do mato. É o que há.
É engraçado. O contraste do branco da vestimenta com os outros, vermelhos, fica-lhe bem. Muito bem mesmo, As arrecadas são, até, mais vistosas. Se calhar é do olho do artista, cá do Epifânio que sou eu. Epifânio dos Santos Carvalho, um criado às vossas ordens. Aliás, bem criado, com catequese e tudo, que o meu Pai que Deus tenha e a minha querida Mãe não eram de modas.
O nosso capitão Salvado, quando estávamos na especialidade de Caçadores Especiais, na Amadora, disse-me que levasse o acordeão para Angola. Assim fiz. Já no barco fora uma amante dedicada, sem protestos nem amuos, sempre à disposição. Sanfona dum raio! O Nunes, sapateiro na vida civil, classificara a instrumento. Melhor do que uma mulher: está sempre de perna aberta. E não tem o Benfica todos os meses…
Aquelas do António Mafra
Quando andámos a construir os jotacês, a estender o arame farpado e a cavar os abrigos, mal dava a noite, era um primor. O pessoal pedia-me coisas do arco-da-velha. Ó Epifânio, sabes aquela do António Mafra, no baile da dona Ester? Sabia. Sei, meus, sei. Com o Dom José de Vicente; que é de São Pedro da Cova; pra mostrar qu’inda é valente; foi dançar a bossa nova. Escorregou no soalho, caiu foi pró hospital; eram praí sete e picos, oito e coisa nove e tal.
E o carrapito da Dona Aurora que é tão bonito – fica-lhe bem. E o papagaio, tu não te metas na vida do Joaquim; ó papagaio, tem cautela ó papagaio; que a bebedeira do velho te transforma em pinguim. Outros pediam a Eugénia Lima. Alto lá, tive de explicar-lhes que era uma Senhora, rainha do acordeão, eu era apenas um mísero tocador de sanfona.
Mesmo assim, o breu era mais fácil de passar. Até ao primeiro ataque. Os gajos vieram de mansinho, se fosse o mestre diria mesmo soto você, piano, piano, pianísimo, chegaram à beirinha do arame e vá de despejar chumbo em quantidades industriais. O furriel Mendonça nem soube do que morrera, um buraquito no meio da testa e a parte de trás da cabeça – zero.
O Quim Cuecas, assim mesmo, natural de Malange, terra do feijão branco, que se auto-apelidava Castanho e era da incorporação da Província (colónia não havia), depois de passada a fuzilaria, disse tratar-se de bala de ponta romba, para elefante, entra direitinha e sai a romper tudo, mioleira e ossos, Cortam a ponta, os filhos da puta.
Abatidos foram, ainda, o Chico Rodrigues, o Caté, meu vizinho de Gondomil, ficou um passador, as tripas de fora, duas ou três rajadas de Kala ou outra assim; o António Martins, de Viana uma morteirada, andámos a varrê-lo para juntar os bocados dele e a minha concertina. Furada de lado a lado, inchada da chuva que caía, pior do que vaca prenha.
A todos se fez o funeral, com o capitão capelão, um tal Bragança. Todos foram ensacados e metidos nos caixões que ali tínhamos, com o nome e o endereço pregados por fora, a fim de seguirem para a Metrópole. Menos a desditosa sanfona. Bem tentou o Raimundinho, que arranjava pneus na civil e não era especial adepto do mulherio, tapar os buracos, nas zonas dos foles. Em vão.
Rabo de homem
Por isso, agora, já não há. Nem instrumento, nem música, nem cantigas, nem mulherio. Dizem que o Raimundinho dá um jeito… Eu nunca tentei. Rabo de homem tem pelo como o do macaco. Bom, se calhar menos. Mas, mesmo assim, como nunca experimentei… Porra! Nem conto!
Hoje estou de sentinela. Nesta altura do campeonato, o hoje repete-se indefinidamente. Com os turras aqui ao lado, a gente não os vê e, de supetão, dá merda. Sobretudo, de noite, como é o caso. Mal sonhava eu, em Boivão ou em Valença onde trabalhava de barbeiro – bom, para ser verdade, de praticante de – que meses depois estaria aqui, de quico na cabeça e arma aperrada, temendo ter de soltar um quem vem lá?
Mas, prontos. Um homem tem de pensar noutras coisas, e estar alerta ao mesmo tempo. A esta hora, por certo, o Rancho não está a actuar. São três e meia da matina e a Maria dos Anjos já deve estar no segundo sono. Deve estar a sonhar comigo, penso. Na última carta diz-me que está à minha espera, mas que não vá de licença, é caro e temos de juntar para o casório.
Pode ser que esteja descascadinha, é tempo de calor, só com o lençol por cima, nunca a vi assim, mas é como se tivesse olhado, guloso. Pelo andar da carruagem, deve ser um espanto, estendida, oferecida, eu a cobri-la de beijos, pau no ar, agora é que vai ser, amor, não te assustes, que o padre Joaquim já nos deu a bênção. Pronto.
De pau feito estou eu agora e sem a possibilidade de o desfazer. O meu padrinho Zeferino, que fez as vezes do meu falecido Pai, um dia disse-me que um homem de pau feito não é a mesma coisa que um homem feito de pau. Gostei. Aprendi. Os cabrões são meninos para vir por aí, nos bicos dos pés como as dançarinas e darem-me cabo do canastro. Era bonito, um tipo morto de piça em punho…
Vai clareando. Ouço um restolhar. São eles. Não são. É o Freitas de Sanfins que me vem render, acompanhado do cabo Felismino. Barriga. Tomates. Senha e contra-senha. Tudo nos conformes. Vou até à caserna, estou cansado de tamanha vigília, mas não tenho sono. O maluco lá de baixo também acalmou, é capaz de se preparar para dormir. Se não pensar na minha conversada, é gajo para isso.
Ainda não se pode dar umas fumaças. Tiro um AC do maço, espeto-o na beiçola, a fingir que sim. Caralho, isto é tudo um fingimento. São as colónias que não são, são províncias ultramarinas. Nas esplanadas em Luanda é o vinho que não é vinho, é banga-sumo. Ainda por cima, de abacaxi. Que devia ser ananás, mas é só abacaxi. Que mistela. É a PIDE que não é, é a DGS. Nisso, o Marcelo é que a sabe toda. Com as conversas em família vai-nos enrabando de fininho. Ganda cabrão, igualzinho ao Salazar.
O tio-avô Serafim
Sabem? Eu, para alem de gostar da música, do som, do espectáculo, também gosto do meu tio-avô Serafim que lá em Boivão dizem que é comunista. O velhote, com setentas e muitos, foi-me contando ao longo dos últimos anos, a sua vida durante a República. A primeira, avô (sempre o tratei assim, não conheci nenhum dos verdadeiros), a primeira.
O menino cala-se muito caladinho. República só há uma; melhor, só houve uma. Isto que temos é caca pura. Que rima com ditadura. Aprende, meu catraio, deixa de roçar os fundilhos pelos bancos, levanta o cu e aprende que eu não duro sempre. O Senhor Serafim fora contínuo num ministério, conhecera o Bernardino Machado, o Afonso Costa, o Manuel de Arriaga, o Brito Camacho, o Cunha Leal. Ensinou-mos todos. O Sidónio Pais, não. Era um bandido.
Toma nota, rapazinho: eu não sou comunista, mas podia muito bem ser. Só que não sou e está dito. Mas estes sacanas situacionistas, se um homem não entoa loas ao Salazar – é comunista. Lembro-me perfeitamente de ele me dizer que não podia ouvir o quem não está connosco… E acrescentava, entre duas gargalhadas acintosas – é contra nosco!...
Deu-me a ler o Capital do Marx, uns discursos do Lenine, mas também outros do Churchill. É um grande homem, não é da Esquerda, mas é um tipo com tomates, comentou. E oferecera-me umas Illustrações Portuguezas, sem e já com fotografias. Fez-me descobrir o assassino Hitler, como lhe chamava e deu-me uma História da Guerra de Espanha, editada na clandestinidade. Com um prefácio de Manuel Azaña.
Sim, porque o Leopoldo Nunes, o José Augusto – que depois viria a escrever uns escarros intitulados carta de Paris – o Cunha Júnior o Aprígio Mafra, eram todos pró Franco, o galego caganito, e as reportagens deles eram fascistas, dizia o avô Serafim. Até o Norberto Lopes, o Portela e o Mário Neves, mais inclinados à esquerda…
O Gaiolas corneta já tocou para o pequeno-almoço, que o Cuecas já nos ensinou que é o mata-bicho. O sol levantou, vai estar mais um dia de calor de ensopar um marmanjo. Com autorização do nosso capitão, os gajos que saem de sentinela podem ir comer sem fazer a barba. E o homem é duro como o aço, não brinca em serviço, mesmo aqui na mata, se um tipo mija fora do penico – é ecada à máquina zero. Do que me encarregou, o que é chato. Até para mim.
Uma mina – das nossas
É então que estala a maka. São só tiros e granadas, a esmo, para cima da malta de caneco na mão. Aproveitando a rendição das sentinelas, os paneleiros vieram atirar-nos como a bonecos de feira. Enfio-me num buraco de morteirada, mas saio, logo de seguida, rastejando até à caserna, para ir buscar a canhota. Aqui é o Inferno, cabrões dos mafarricos.
Quando puxo a culatra, sinto-me no ar. E estou. Pisei qualquer coisa e voo até cair de borco. Não me lembro de mais nada. Acordo no Hospital Militar em Luanda, o médico diz-me que tive muita sorte e só fiquei sem a perna esquerda, por baixo do joelho. Era uma mina, das nossas, caralho, das nossas. Para outros pisarem, que não eu. Mas pisei.
No resto está tudo bem, umas ligaduras, umas tinturas, umas sulfamidas, o pé que me resta engessado, mas não há-de ser nada. O clínico, que é major, conta-me que no Alcoitão me põem uma pata nova. Melhor do que a verdadeira, acentua para me animar. Tu que fazes? Para já, nada. Mas vais começar a fazer. Ginástica e tens de te habituar às muletas. E passas à peluda, logo que estejas bom.
Ele insiste: que fazes na vida civil. Barbeiro, ou seja, ajudante. Não tem problema, podes cortar cabelos e fazer barbas, tens os dois braços e as duas mãos. Se fosses carteiro, isso já era outra coisa, bem diferente. Assim, não te chateies. Vai tudo correr bem. Para os que lerparam acabou-se. Mas para os que ficaram, como tu, que não seja o pior. Vais arribar, moço.
Claro que vou. Quando sair do avião, outra loiça, o barco já foi, vou a mata-cavalos para Boivão, de táxi, nem olho para Valença, nem para a ponte, muito menos para a Galiza. Para ver a Maria dos Anjos, que deve continuar a ter os seios empinados como dois morros de mel. E para encontrar os outros, os amigos, o avô Serafim, dar-lhe um abraço dos grandes. À Maria dos meus amores, arrefinfo-lhe um beijo na boca – de estalo. Ou mais. Na frente de toda a gente, para que saibam que é minha, uma espécie de ferrete de marcar novilhas – mas sem dor, só doçura.
Depois, bom, depois, volto a Valença, visitar o patrão Gonçalves para lhe dizer que estou ali, torno à tesoura, ao pincel e à navalha. Mas, antes, durante uns dias, fico-me pela minha freguesia. Até porque, quero tratar da boda, mesmo que os pais da Maria dos Anjos enjeitem a novidade. Que, no fundo, não é nenhuma, é mais um fingimento a juntar aos outros.
O enfermeiro vem tirar-me a febre, vai na boca ou no sovaco? Aí mesmo meu sargento, sei lá por que cus já passou esse zingarelho. Mede-me a tensão. A outra, sem n, vai voltando só de pensar na moçoila que me espera. E, aí, uma dúvida. Quando ela me perguntar se volto para o Rancho – que lhe digo? Com certeza que não, nesses preparos, infelizmente. Dançarino sem perna, por melhor que seja a prótese (penso que é assim que se chama), corre o risco de pisar chão torto e inclinado. Viras, malhões e quejandos – acabou-se.
Já sei. Percorrendo-lhe a pele de pêssego, vou responder-lhe que sim. E acrescento logo que para tocar sanfona os dois braços chegam. E para a apertar ao peito – também. A perna? Que se foda!
(Fotos da guerra: 4CCE, a quem agradecemos)
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reproduzido por gentileza do Antunes Ferreira in travessadoferreira
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Alguns dos contos foram reproduzidos no Kant_O: O Rio e a Sorte , O Cunhama ai ué e
Boca Calada
e neste Ao Sabor do Olhar: Grades e Copos e Carne Fresca .
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Mas repito, nada como visitar e deambular pela travessadoferreira , onde há muitos e variados escritos, não só dele como d'outrem.
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NOTA - No texto fala-se nos cigarros AC, uma marca de Angola. E esta referência fez-me lembrar dum comentário do meu pai, à mesa, em Luanda: que Fulano «tinha sido preso pela PIDE porque numa cervejaria puxara dum maço de AC, olhando para este e comentando "Adeus Craveiro"» e mais o meu pai não contou ficando eu, miúdo de 12 anos, sem saber porque carga de água o homem tinha sido preso por se despedir do Craveiro Lopes, substituído pelo Américo Tomás na Presidência da República, em confronto este com o General Humberto Delgado.
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Só mais tarde, já em Portugal, soube das divergências políticas entre o PR que fora substituído e o efectivo governante-mor, Salazar, apoiado na PIDE. Sempre ouvi dizer mas não sei se é verdade, que em Angola o vencedor teria sido efectivamente o chamado General sem Medo. (Victor Nogueira)
5 comentários:
É muito interessante e sentida a forma como este autor escreve...
sente-se a diferença entre o sonho e a realidade, apesar da "toada" ser a mesma...
Abraço
Maria Mamede
Eu não mereço, Amigo, eu não mereço. Já uma vez te disse: tu estragas-me com mimos. Mais um. Mas, repito, tripito, quadripito: eu não mereço. Ponto.
Se algum dia publicar estas coisas em livro, palavra de honra que te vou mencionar no dito cujo. A propósito, ajuda-me a arranjar um Editor, se possível, bom.
De todas as formas, muito obrigado.
Victor Nogueira enviou-lhe uma hiperligação para um blogue:
Cá vou republicando textos teus. Quando achares que está a ser abuso, manda-me stopar. Um abraço VN
Blogue: Ao Sabor do Olhar
Mensagem: SOMBRA DA GUERRA COLONIAL
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Já te respondi no osabordolhar. Ké um ganda títalo de blóguio. Mesmo assim - muito obrigado simplesmente.(...)
Henrique
gostei do que li!
parabéns!
Já agora, que a memória me falha... em criança assistia aos famosos telegramas com a barra negra anunciando uma morte - não me lembro se os portadores eram os carteiros ou soldados. só sei que apareciam fora de horas - lembrei isto hoje pq estou a escrever um texto no netblo a este propósito.
se souber, envia-me um mail? liliaabr@gmail.com
Obrigada e parabéns pela sensibilidade!
Caríssima
Muito obrigado, antes do mais, agradecimento que estendo ao Victor que fez o favor de me passara a sua pergunta. Ainda bem que gostou do meu conto. Faço o que posso para que as pessoas se sintam bem quando me lêem. Como poderá ver abaixo, tenho eu próprio um blogue que - quando o quiser fazer - poderá visitar.
Ora bem, quanto ao assunto: as comunicações das mortes em combate ou similares eram feitas pelo Ministério da Defesa, em primeiro lugar, por telegrama via CTT, às famílias. Por vezes, a isso seguia-a uma deslocação a casa dos parentes de um oficial. Mas não era mais do que, por exemplo, uma iniciativa da unidade onde o militar tirara a especialidade, antes de ir para a guerra colonial. Aquando dos funerais, também normalmente comparecia um representante das Forças Armadas.
Espero que fique elucidada. Aproveito para lhe comunicar que no dia 16 de Abril, pelas 18:30, na FNAC do Colombo, faço o lançamento do meu livro de contos sobre a guerra colonial em Angola em que infelizmente tive de participar. Tem por título «Morte na Picada» onde consta o conto em causa. Dado o interesse que demonstrou, muito satisfeito ficaria se quisesse estar presente e se se identificasse, para a conhecer pessoalmente. Outro obrigado.
Com amizade
Henrique
ter 19-02-2008 19:44
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