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terça-feira, 27 de março de 2012

António Viegas ~ No ‘mercado da democracia’, a selva dos medos e da promiscuidade política

Quebrar sem Partir



SEGUNDA-FEIRA, 26 DE MARÇO DE 2012
No ‘mercado da democracia’, a selva dos medos e da promiscuidade política


A Greve Geral do dia 22, se avaliada apenas pelos seus aspectos meramente quantitativos, saldou-se, como era já esperado, por um relativo fracasso. Mesmo sem os números da mesma (desta vez nem a CGTP nem o Governo adiantaram quaisquer valores), a adesão à greve ficou muito aquém do que seria expectável atento o carácter de paralisação geral. Já sobre a mobilização e consciencialização conseguidas nos muitos sectores de actividade envolvidos, bem como a sua projecção mediática, os efeitos podem revelar-se positivos. O próprio nervosismo da polícia na repressão às manifestações havidas é sintomático do pânico que começa a gerar nos responsáveis políticos este tipo de acções. Ao mínimo desvio do programado, as denominadas forças da ordem têm ‘ordem’ para carregar... indiscriminadamente – até sobre jornalistas no exercício da função e devidamente identificados!

Para além destes aspectos e da ponderação a fazer sobre a utilidade de certas práticas sindicais no actual contexto social e político (claramente extravasando do tradicional âmbito nacional para o global), o que talvez mais importe analisar são as causas da fraca adesão aos apelos para a realização de uma acção solidária na defesa de interesses reconhecidamente comuns. Percebe-se então que o sentido comunitário há muito que deu lugar ao individualismo do ‘salve-se quem puder’, que a sobrevivência na selva dos ferozes mercados é a consequência lógica no termo de um longo processo zelosamente construído, sobretudo nas últimas décadas, pelo neoliberalismo.

Este é o ambiente social mais propício à eclosão do medo – a raiz da dominação pessoal – e que se manifesta de múltiplas formas: o medo do outro que gera a submissão (mas também a xenofobia); o medo da diferença patente na intolerância (de que o racismo é apenas uma das variantes); o medo do acossado induzido por ameaças várias (o medo da perda de si ou de alguma coisa, o medo da mudança,...). É notório que, hoje, a maioria dos portugueses (gregos, espanhóis, italianos,...) vive acossada, cada vez mais refugiada no seu ‘castelo’ pessoal, com medo de perder o pouco que tem. E foi seguramente o medo a principal condicionante dos resultados desta greve. O medo que se apoderou das pessoas quanto à sua situação actual e futura, que condiciona todas as suas decisões e atitudes. Em que cada um se sente entregue apenas a si próprio, num deliberado arremedo civilizado do regresso à Selva!

O extremo individualismo das sociedades actuais, alimentado pelo conjunto de valores que melhor caracterizam o sistema (competição, elitismo, consumismo,...) impede-as de ver que só em colaboração – seja a nível empresarial/sindical ou nacional/político (e cada vez mais mundial) – as suas acções têm condições de alcançar êxito na defesa dos direitos da maioria e na correcta identificação dos privilégios da escassa minoria que luta por todos os meios (legítimos ou não) para os manter! Porque, importa referi-lo (e assumi-lo na acção política), essa luta conduziu, na prática, à fusão entre o poder político e o poder dos negócios, a ponto de hoje praticamente se confundirem.

Coincidência ou não, no mesmo dia, à noite, a Quadratura do Círculo produziu um dos seus mais sintomáticos programas, num debate centrado nas relações entre a política/políticos e os negócios. O painel dos três comentadores habituais foi unânime, pelo menos em teoria (divergem nos exemplos concretos), em que nessas relações existe promiscuidade. Pacheco Pereira (JPP), paladino de uma direita que se pretende civilizada e a quem se reconhece independência de espírito bastante para não ser confundido com a carneirada no poder, foi mais preciso ao afirmar que se nos anteriores Governos (em especial o de Sócrates) era visível uma certa promiscuidade, agora passou-se para uma verdadeira comunidade de interesses, a política assume-se como mera extensão dos negócios, acrescentando, relativamente ao poder político actual, que ‘nunca nenhum Governo em Portugal desde o 25 de Abril teve tão grande proximidade, política e ideológica, com os interesses (das elites económicas)’.

Mas que esperar de um Governo que centra toda a sua estratégia política no cabalístico desígnio nacional (?) de ‘voltar aos mercados’(!) – extensão natural dessa tal comunidade de interesses de que fala JPP; cujo principal partido convoca um Congresso para debater ‘a dança das cadeiras’ – porque naturalmente prejudicado o debate sobre projectos colectivos para desenvolver o País pela há muito tomada opção política de comunhão com interesses particularistas; que concentra toda a táctica mediática no ataque à ‘figura de Sócrates’ – na expectativa de que tal ‘distracção’ permita desviar as atenções do essencial da política de austeridade/punição sobre as pessoas?

Confesso que, no fundamental, nunca me senti tão próximo de JPP como desta vez!

Publicada por AVCarvalho às 15:30

http://quebrarsempartir.blogspot.pt/2012/03/no-mercado-da-democracia-selva-dos.html

segunda-feira, 26 de março de 2012

Jack Kerouac – 90 anos após o seu nascimento





Wand'rin' Star 


Jack era um escritor. Muitos dos que se autointitulam escritores, e têm o seu nome em livros, não são escritores e não escrevem. Ser um toureiro (bullfighter), que enfrenta um touro, é diferente de ser um embusteiro (bullshitter) que encena passes sem o touro à frente. O escritor “esteve lá”, ou não pode escrever.
William S. Burroughs, Le Nouvel Observateur, 29 de Outubro de 1969.
Jean-Louis Lebris de Kerouac nasceu a 12 de março de 1922 em Lowell, Massachusetts, numa família de emigrantes franco-canadianos. Aos 17 anos, mudou-se para Nova Iorque, beneficiando de uma bolsa de estudo, concedida devido às suas capacidades atléticas. Frequentou a Horace Mann School e a Universidade de Columbia. Com o advento da II Guerra Mundial, desistiu da faculdade para se alistar na marinha. Foi desmobilizado compulsivamente depois de problemas disciplinares, servindo mais tarde na marinha mercante.
The Town and the City (1950), o primeiro romance de Kerouac a ser publicado, denotava forte influência de Thomas Wolfe, o que, na época, era comum a muitos aspirantes a escritores nos EUA. O romance foi um fracasso e o próprio Kerouac sentiu-se frustrado com os resultados.
William Burroughs e Allen Ginsberg encorajaram-no a não desistir. Este triunvirato foi a génese da Beat Generation: uma geração do pós-guerra, inconformada e marginal, sem ilusões mas com fúria de viver. O termo “beat” foi explorado por Kerouac nos seus vários significados: “beatífico”, o batimento do coração, os “vencidos”, o ritmo do jazz, o ritmo da escrita, a pulsação da vida. Os beats opunham-se ao conformismo da sociedade da década de 50 e valorizavam uma liberdade de expressão sem barreiras.
No entanto, Kerouac viria mais tarde a expressar algumas reservas quanto ao comportamento dos seus companheiros da Beat Generation, que classificou de “maçadoramente intelectuais”. Tal como o perspicaz Burroughs afirmou, embora houvesse uma Geração Beat, “não poderia haver três escritores mais diferentes entre si”.
William Burroughs parece dar um sermão a Jack e, na verdade, várias vezes o fez, criticando alguns dos seus atos.
URGÊNCIA ARTÍSTICA
Em 1951, Kerouac escreve On the Road, tornando o seu amigo Neal Cassidy numa das personagens centrais do romance. Para Kerouac, Cassidy, que também escrevia, era um autêntico irmão, quase um visionário, e teve grande influência no seu estilo, que sofreu uma autêntica reviravolta – Kerouac encontrara a sua voz. On the Road é hoje considerado um clássico. Depois de inúmeras rejeições, o escritor viveu uma fase de desespero, até que a Beat Generation começou a dar que falar. Embora alguns autoresbeat já tivessem publicado romances, como John Clellon Holmes, por exemplo, todos referiam que Kerouac era o mais talentoso e ignorado.
On the Road acabou por se tornar num best-seller, e Jack Kerouac, com a sua imagemcool e espírito aventureiro, tornou-se no porta-voz da Beat Generation, ainda que grande parte dos críticos teimasse em não lhe reconhecer o talento. Truman Capote proferiu uma das maiores barbaridades literárias do século XX, ao dizer, referindo-se aos beats num debate televisivo, em 1959: “Nenhum deles sabe escrever, nem sequer o Sr. Kerouac. Isso não é escrever, é datilografar.”Norman Mailer, que também estava presente, insurgiu-se de imediato face a esta afirmação. A resposta de Mailer caiu no esquecimento, e a frase perseguiu Kerouac até à sua morte.
Kerouac sabia que a Geração Beat se tornaria num marco nostálgico, mas sentia que a sua escrita era muito mais do que isso. As rejeições e a troça feriram-no, e o sucesso marcou-o da pior forma possível. Sempre fora um homem tímido, sensível e calado, e não sabia lidar com os media. Alguns viam nele a caricatura de uma geração de derrotados que passavam o tempo a cruzar a América, sem rumo nem ideais. Agora, Kerouac era famoso. E não se podia sentir mais miserável.
Depois da publicação de On the Road, começou a planear aquilo a que chamava a «Lenda de Duluoz»; diversos romances autobiográficos, tendo como personagem principal o seu alter-ego literário. Desejava desenvolver uma filosofia própria de escrita, a qual denominou de “prosa espontânea”. Este estilo, algo semelhante ao da “corrente de consciência”, desenha um retrato bastante fiel do estado de espírito do escritor, sem inibições, um tom confessional. No entanto, visto que grande parte das vezes Kerouac escrevia sob a influência do álcool, o resultado também pode ser o discurso ininteligível que se esperaria de alguém embriagado.
The Subterraneans (1958) relata o envolvimento de Kerouac com Alene Lee. Tal como noutras obras, Burroughs, Ginsberg e outros aparecem no texto, com nomes fictícios. Kerouac escreveu-o em três dias e três noites. Já em On The Road, tinha utilizado um rolo de papel, para evitar mudar a folha na máquina de escrever. (O primeiro rascunho tinha um único parágrafo…) Esta “urgência artística” provocou alguns desequilíbrios no seu estilo, que, contudo, é sempre identificável.
Kerouac admirava Marcel Proust e tinha o hábito de transportar consigo Em Busca do Tempo Perdido, como talismã, segundo dizia. Mas Kerouac não tinha a ponderação de Proust, nem o seu estilo coeso, de livro para livro. “First thought: best thought”, nas palavras de Allen Ginsberg; o primeiro pensamento é, muitas vezes, o mais original, e Kerouac, seguindo esta máxima, atirava-se à escrita de um modo quase selvático, como se fosse o último dia da sua vida, o que originou alguma irregularidade na sua obra.
The Dharma Bums, por exemplo, é um dos seus livros mais interessantes. Relatando a amizade com o poeta Gary Snyder, o narrador descreve a conversão a um misticismo, que, nos últimos anos de vida, o desiludido Kerouac viria a abandonar por completo. Por outro lado, Visions of Gerard, acerca do seu irmão mais velho, que morreu quando ambos eram crianças, é um livro errático, elaborado a partir de pormenores fornecidos pela mãe, Gabrielle, visto que Jack tinha muito poucas recordações de Gerard.
Quatro fotos de Kerouac na infância e juventude.
“SPRINGTIME MARY”
Maggie Cassidy foi publicado em 1959, seis anos depois de ter sido escrito, quando Jack Kerouac conquistara fama repentina com On The Road. Como de costume, a crítica massacrou o livro. Na época em que o escreveu, Kerouac já era um alcoólico descontrolado e infeliz. Tinha perfeita consciência de que passara a barreira dos 30 anos, e que a maior parte dos seus amigos tinham já uma carreira delineada ou, pelo menos, já tinham assentado, enquanto ele, Jack, não tinha nada. Terá sido a paixão por Carolyn Cassidy, mulher de Neal Cassidy, que lhe despertou a ideia de escrever a história do seu primeiro amor: Mary Carney. Jack não perdeu o contacto com Mary, ao longo da sua vida, e encontrou-se com ela durante alguns regressos esporádicos a Lowell. Para Kerouac, Mary sempre foi o ideal feminino, inatingível e romântico, uma inocente rapariga irlandesa. Pauline Cole, a outra paixão de Kerouac/Duluoz baseia-se em Peggy Coffey, com quem Jack saía simultaneamente, enquanto namorava com Mary.
Maggie Cassidy pertence ao primeiro ciclo da «Lenda de Duluoz», tal como Doctor Sax. A obra, originalmente intitulada Springtime Mary, foi escrita no início de 1953 no apartamento da mãe de Kerouac, em Richmond Hill, Nova Iorque. O primeiro capítulo foi composto na máquina de escrever e o resto foi escrito à mão. Trata-se de um dos melhores exemplos do estilo maduro de Kerouac e um dos seus livros mais acessíveis. É uma história comovente, por vezes agridoce, sobre a passagem para a idade adulta.
Jack Kerouac foi devorado por uma vida de autodestruição, mas nunca deixou de viver para a escrita. A sua última grande obra, Big Sur (1963), pode ser interpretada como a alma de um alcoólico descrita no papel, em “prosa espontânea”, mas, ainda assim, ponderada, como se o autor soubesse o que estava a fazer a si mesmo e descrevesse o processo. A partir daí, Kerouac nunca mais encontrou o rumo. A sua sensibilidade artística parecia ser a sua fraqueza.
Apesar de ter bastante em comum com Burroughs e Ginsberg, a personalidade de Kerouac era complexa e contraditória – nalguns aspetos, era solidário e quase puritano, noutros, completamente irresponsável e egoísta; sofria de um doentio complexo de Édipo e herdou da mãe alguns sentimentos racistas que viria a defender nos últimos anos de vida. Mostrou que conseguia ser cruel, nunca reconhecendo a sua única filha, Janet Michelle, apesar dos testes de sangue terem confirmado a paternidade.
Janet viria a desculpar a rejeição do pai, comentando que Jack tinha medo das suas próprias emoções e que viveu demasiado tempo com a mãe. De facto, Jack Kerouac nunca largou as saias da mémère Gabrielle, pessoa racista e desconfiada, que exerceu um papel tristemente dominador em toda a sua vida. Os amigos censuravam-no: “Como podes dizer que não é tua filha, Jack? Ela é a tua cara chapada.”
Jan Kerouac (1952 - 1996), autora de Baby Driver: A Story About Myself e Trainsong.
Esta rejeição contribuiu para a morte prematura de Janet, que se tornou toxicodependente aos 13 anos, prostituindo-se no Lower East Side de Nova Iorque, enquanto Jack se embebedava nos bares da Flórida. Janet viria a falecer em 1996 – uma romancista promissora, que sempre tentou assegurar a preservação do legado do pai.
Foi a excelente constituição física de Kerouac que lhe permitiu viver durante tanto tempo. Os anos em que foi atleta e jogador de futebol ajudaram-no a suportar os castigos diários a que se sujeitou, o delirium tremens, os desmaios. Os médicos avisaram-no. Começou a tossir sangue enquanto via televisão. Foi para a casa de banho; a tosse não parava. Faleceu em St. Petersburg, na Flórida, a 21 de outubro de 1969. 26 transfusões de sangue não conseguiram impedir a hemorragia interna provocada pelo alcoolismo. Tinha 47 anos.
Jack Kerouac vivia as palavras, a vida e o tempo, de modo desenfreado e criou o seu próprio universo, rejeitando os valores asfixiantes da América dos anos 50, exaltando a ânsia por novas experiências. Acima de tudo, era um escritor: não fez “passes sem o touro à frente”. Jack “esteve lá”. E, ao lermos Maggie Cassidy, compreendemos porquê, ao apreciarmos pequenas pérolas que não perderam o brilho:
…o amor é a herança, e parente próxima da morte; o único amor só pode ser o primeiro, a única morte a última, a única vida a que existe dentro de nós, e a única palavra… reprimida para todo o sempre.
OS SUBTERRÂNEOS
The Subterraneans foi escrito em outubro de 1953 e publicado em 1958. Abrange o período na vida de Kerouac correspondente ao verão de 1953, em Nova Iorque. Allen Ginsberg vivia no Lower East Side, e Alene Lee vivia nas proximidades, numa moradia grande, conhecida como Paradise Alley, no 501 da East Eleventh Street, o cenário de grande parte do romance. Tradicionalmente, era um bairro de italianos, mas tornara-se, há algum tempo, num local frequentado pelo grupo hip da zona de Greenwich Village, ao qual Alene pertencia. Nesta época, os hipsters (os “subterrâneos”) reuniam-se no Fugazzi’s Bar e no San Remo. Os seus membros, Stanley Gould, Anton Rosenberg, Gregory Corso e outros, ouviam jazz mais pesado, experimentavam drogas mais duras, conheciam os livros que valia a pena ler e sabiam o que passara de moda. Jack Kerouac frequentava bastante estes bares, passando depois a noite em casa de Ginsberg.
Nesse verão, Ginsberg (durante a breve tentativa de reprimir a sua homossexualidade) namorava com Alene Lee, uma jovem negra com ascendência Cherokee, atraente, inteligente, mas tal como os seus companheiros “subterrâneos”, algo neurótica. Os indivíduos ultra-hip não queriam conhecer Kerouac, espalhafatoso e também demasiado frontal e vulnerável, qualidades nada desejáveis naquela comunidade. No entanto, Alene sentiu-se atraída por Kerouac e rapidamente se apaixonaram, encorajados por Ginsberg, que viu assim uma forma de se livrar de Alene.
A relação terminou devido ao motivo habitual: Jack tinha horror de se envolver emocionalmente. Os amigos relataram que ele e Alene faziam um par maravilhoso, tinham uma relação equilibrada – algo que era raro em Jack – e pareciam próximos e íntimos. A julgar por The Subterraneans, também se davam bem na cama. Os problemas surgiram quando Jack se apaixonou por ela, o que desencadeou a sua ânsia neurótica pela autodestruição, começando a beber em excesso. A confissão mais espantosa do livro é a do complexo de Édipo que Kerouac sentia pela mãe, revelando-se incapaz de amar outra mulher. Este pormenor é sublinhado pelo nome que Kerouac deu ao seu alter-ego: Leo Percepied. Leo era o nome do seu pai, com tudo o que isso implica. Perce-pied significa literalmente pé aguilhoado. O rei-criança Édipo foi ritualmente ferido no pé e exposto no monte Cithaeron, devido à profecia de que iria matar o pai e casar com a mãe.
“NÃO ALTEREI UMA ÚNICA PALAVRA”
A técnica de improvisação que Jack Kerouac desenvolvera, foi moldada pelo gosto que tinha pelo jazz, a sua crença de que o jazz era a arte essencial americana e de que ninguém fora capaz de ver o potencial da prosa jazz.
A primeira das suas obras a ser completamente escrita em prosa espontânea, The Subterraneans progride assim através de extensos e coloridos parágrafos, em parte relacionados com as notas improvisadas de um músico de jazz. É uma tentativa de criar um romance bop, em que o autor mergulha em temas variados, encontrando a sua coerência narrativa. É a arte do homem branco, adaptada dos negros, fundindo ritmos exuberantes e melancólicos no que Kerouac julgava ser uma técnica insuperável.
Demorara a Kerouac 15 anos a encontrar a sua própria voz, pelo que a espontaneidade a que se refere não é datilografar, mas sim, o aprimorar de uma técnica e de um estilo.The Subterraneans foi escrito dias depois do rompimento com Alene, para evitar a reinterpretação dos factos que o tempo permite, embora o próprio Kerouac soubesse que o seu domínio do texto, enquanto escritor, seria incontornável.
De acordo com Jack Kerouac, “The Subterraneans é uma história real acerca de um romance que tive com uma rapariga negra na América. Apenas os nomes e as circunstâncias foram alteradas. O modelo que segui foi o de Cadernos do Subterrâneode Dostoiévski, uma completa confissão das piores agonias ocultas, depois de um envolvimento de qualquer tipo.”
“A prosa em que o escrevi é a que acredito ser a prosa do futuro, tanto ao nível consciente como subconsciente, limitada apenas pelas restrições temporais. Não alterei uma única palavra depois de ter acabado de o escrever, em três sessões, do anoitecer à alvorada, na máquina de escrever, como se fosse uma longa carta a um amigo. Acredito que esta é a única literatura possível do futuro livre, uma confissão ininterrupta, sem revisões e total, acerca do que sucedeu literalmente na vida real. Não é tão fácil como soa, já que magoa contar e imprimir a verdade.”
Tal como escreveu a Malcolm Cowley, em 1955, “tudo o que um homem anseia por ocultar, rever e deixar por dizer é exatamente aquilo que falta à literatura contemporânea”.
No entanto, Kerouac omitiu diversos pormenores, tal como o encontro ambíguo com Gore Vidal, o qual disse ter “esquecido”. Teve também de mudar a ação de Nova Iorque para São Francisco, transpondo nomes de clubes de jazz e de ruas, para evitar um processo judicial por parte de Alene Lee. (Alene viria a proteger a sua privacidade a ponto de, só na altura da sua morte, em 1995, os biógrafos de Kerouac conseguirem descobrir a sua verdadeira identidade.)
Estimulado pela benzedrina, Kerouac escreveu a obra com uma rapidez extraordinária e ficou orgulhoso com o resultado, descrevendo numa carta:
“Escrever o ‘Subs’ em três dias e três noites foi uma proeza atlética realmente fantástica, bem como mental, devias ver-me depois de ter terminado… branco como a cal, perdi seis quilos e, quando me vi ao espelho, achei-me com um aspeto estranho.”
Deu o manuscrito a Alene, para que o lesse, dizendo que, se ela não gostasse, o podia queimar, mas ela sabia que Kerouac tinha uma cópia em casa. Ela odiou o livro, ficou chocada ao ver relatados os seus problemas, achou que era uma invasão de privacidade e que Jack deturpara diversos diálogos. A obra foi mal recebida pela crítica: Tinha tudo o que o establishment odiava: um romance entre uma negra e um branco, drogas, comportamentos irresponsáveis, bebedeiras, etc. No entanto, tornou-se num best-seller e a MGM comprou os direitos cinematográficos por 15 mil dólares.
Obras como Maggie Cassidy e Doctor Sax pertencem ao primeiro ciclo da «Lenda de Duluoz», ao passo que The Subterraneans é um episódio posterior. O estilo intuitivo de Kerouac, infringindo algumas regras gramaticais e com um ritmo que sugere as improvisações do jazz, impressionou de tal forma Burroughs e Ginsberg, que estes lhe pediram que escrevesse um texto acerca do método que utilizara. Kerouac elaborou, para os amigos, um ensaio sobre a prosa espontânea. Ginsberg e Burroughs adaptaram algumas destas sugestões nas suas próprias obras, Howl (1956) e Naked Lunch (1959). «Pontos Essenciais da Prosa Espontânea» e «Convicções e Técnica da Prosa Moderna» ainda hoje são conhecidos como os manuais do estilo Kerouac.
David Furtado
(Nota: Este texto foi adaptado dos prefácios que escrevi para dois livros de Kerouac que traduzi: Maggie Cassidy e Os Subterrâneos. O primeiro continua inédito em português.)


Em 12-03-2012 00:37, David Furtado escreveu:
Caro Victor Nogueira,

Talvez este, sobre os 90 anos do nascimento de Jack Kerouac, também lhe interesse:

http://davidlfurtado.wordpress.com/2012/03/12/jack-kerouac-90-anos-apos-o-seu-nascimento/

Abraço,

David Furtado