Viva a Vida !

Este blog destina-se aos meus amigos e conhecidos assim como aos visitantes que nele queiram colaborar..... «Olá, Diga Bom Dia com Alegria, Boa Tarde, sem Alarde, Boa Noite, sem Açoite ! E Viva a Vida, com Humor / Amor, Alegria e Fantasia» ! Ah ! E não esquecer alguns trocos para os gastos (Victor Nogueira) ..... «Nada do que é humano me é estranho» (Terêncio)....«Aprender, Aprender Sempre !» (Lenine)
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sexta-feira, 4 de fevereiro de 2011

Há 50 anos, em Angola... - 4 Fevereiro 1961

Fotos de Lurdes Martins - Fotos do Mural

Foto 213 de 214 


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Há 50 anos, em Angola...
A todos os resistentes, o meu agradecimento eterno.
A todos os que foram tratados como heróis e mais tarde como assassinos, a minha compreensão.
A todos os que sofreram (e sofrem) o meu fraterno sorriso embrulhado numa lágrima.
Adicionada em 4/1
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há 19 horas · GostoNão gosto · 1 pessoaLurdes Martins gosta disto. ·
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Victor Nogueira E a todos os que foram considerados terroristas e afinal eram na maioria combatentes pela liberdade ! ? *
há 2 horas · GostoNão gosto · 1 pessoaLurdes Martins gosta disto.
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Lurdes Martins Victor, esses não foram (talvez os principais) resistentes?
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há 21 minutos · GostoNão gosto ·
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Victor Nogueira Também os havia em Portugal. Fazia parte do programa do PCP a independência das colónias e a directiva para os seus militantes "fazerem" a guerra colonial e trabalho político por dentro, ao contrário de muitos dos esquerdistas, que se "exilavam". A transformação do programa corporativo dos capitães do quadro em programa político do MFA também deverá algo ao PCP, para além doutros militares do quadro mais politizados, como Melo Antunes e Vasco Gonçalves !
há cerca de um minuto

Victor Nogueira Cuíto Canavale foi onde se travou a batalha que mudou o rumo da guerra civil, entre o Exército governamental e nacionalista do MPLA apoiado pelos Cubanos contra o Movimento tribalista e racista da UNITA apoiada pela racista União Sul Africana, ainda Mandela estava preso e era considerado terrorista pelos EUA, situação que se manteve já ele era Prémio Nobel da Paz e Presidente eleito da US Africana, após a queda do Apartheid
há alguns segundos
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quarta-feira, 2 de dezembro de 2009

O FZ especial “Turra” - Antunes Ferreira

Sábado, Dezembro 30, 2006



O FZ especial “Turra”
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José Augusto Sacadura
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Foi por esta altura... Foi entre o Natal e a passagem do ano, nos finais de 1968, e todas as unidades militares estacionadas em África encontravam-se em prevenção especial, tal como nas Instalações Navais da Ilha do Cabo – as INIC – em Luanda, onde eu prestava serviço militar como 2.º Tenente da Reserva Naval. Para além do oficial de dia, havia dois outros oficiais a assegurar os turnos da noite e coubera-me a mim o segundo “quarto” (das 4 às 8 da manha), substituindo o 1º Tenente J. a quem fora destinado o primeiro turno da noite.
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Às três da manha acordei com o despertador, lavei-me, vesti a farda, coloquei o cinturão com a pistola – obrigatória em situações de prevenção como aquela – e saí para a Base com a qual a Messe comunicava directamente. Da Messe ao portão de entrada da Base onde ficavam as instalações do oficial de dia eram menos de dez minutos a pé e assim apresentei-me para receber o serviço cerca de um quarto de hora antes das quatro.
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O Tenente J. disse-me então, estranhamente sorridente, que me deixava um berbicacho dos diabos .... E explicou-me: cerca de duas ou três horas antes o Sargento de serviço viera dizer-lhe que um fuzileiro, recém-chegado do Leste, bêbado ou fora de si, não queria esperar pela hora normal de abertura do portão (o que, em períodos de prevenção especial apenas acontecia de meia em meia hora) e estava a bater furiosamente às grades de entrada.
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Tratava-se do Cabo FZ especial de alcunha “O Turra”, ganha em anteriores comissões de serviço designadamente na Guiné onde ficara conhecido como o “Terror dos Turras”. Na lenda da guerra atribuíam-se-lhe, não sei se com verdade, gestos de grande coragem a par de actos desmedidos de autêntica crueldade. Era conhecido como um típico profissional da guerra: tão experiente e destemido quanto desapiedado e excessivo.
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Tendo concluído recentemente uma comissão na Guiné, oferecera-se como voluntário para Angola. Colocado no Leste, passara por situações de grande risco e enorme desgaste psicológico, pelo que, “cacimbado”, tinha sido evacuado para Luanda para tratamento no Hospital Militar. Chegara nesse próprio dia e estivera a “celebrar” com amigos o regresso à cidade.
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Emboscadas e prisão
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Aberto o portão, o Tenente J. chamou-o e, apesar do estado em que ele se encontrava, conversaram ainda durante alguns minutos até que o oficial lhe ordenou que se fosse deitar. Só que, em vez disso, o “Turra” deve ter achado que a Base se tinha transformado num campo de operações, pelo que desatou a fazer emboscadas sucessivas, aparecendo e desaparecendo entre a vegetação que ladeava o acesso ao interior das INIC, ora se afastando, ora voltando a aproximar-se da entrada.

O oficial chamou-o então e ordenou-lhe que se retirasse de vez para a caserna, ameaçando-o com a prisão se não obedecesse imediatamente. Ora, o Tenente J. era um homem inteligente, culto, bom conversador, na boa tradição da Marinha, com imenso sentido do humor, mas com alguns traços de um espírito militarista, muito especialmente no que à disciplina dizia respeito.

Assim, quando voltou a ver o “Turra” emboscado em frente do seu Gabinete, não se conteve, chamou o Sargento de turno e ordenou-lhe que, com duas praças, desse voz de prisão ao fuzileiro. Cumprindo a ordem, ladearam o “Turra” e levaram-no para o que, na Base, à falta de outra coisa, se qualificava pomposamente como “prisão” – um quarto sem quaisquer condições de segurança, a porta de acesso com uma fechadura rudimentar e, lá dentro, a armação despida de um beliche metálico.
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Lá chegados, o “Turra”, que parecia já relativamente calmo, terá pedido que não o fechassem à chave. Todavia, o Sargento entendeu cumprir à letra a ordem recebida, fechou mesmo a porta à chave e deixou as duas praças a fazer a segurança à porta da prisão. Acto contínuo, toda a Base ouvia os berros do “Turra” que, fora de si, gritava: “O Salazar não tem culpa” e “Estes filhos da puta vão mas é acabar todos mortos”!!!
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Contactado pelo Tenente J., disposto a medidas drásticas para acabar com o “festival”, um dos médicos de serviço ao Hospital Militar prescreveu um calmante forte, em dose dupla, a injectar ao preso. Tarefa árdua que mobilizou quatros homens só para o segurarem, além do enfermeiro que comentou que “nem um cavalo ia continuar acordado depois de levar uma dose daquelas”. E, na verdade, durante alguns minutos, houve paz ...

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Onde está o filho da puta?
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Mas as tréguas foram de curta duração. Dali a pouco, e se possível ainda com maior intensidade, recomeçaram a ouvir-se os berros e as ameaças do detido. Foi com esse som de fundo que o Tenente J. me passou o serviço, desejando-me “as melhores felicidades”... (!?)
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Quase de imediato, o sargento de serviço veio dizer-me que o “Turra”, depois de arrombada a porta, lograra fugir da prisão, dera dois empurrões nos marinheiros postados à entrada, fora à caserna buscar a sua G3 e dirigia-se armado a caminho do meu gabinete. Fiquei à espera do evoluir dos acontecimentos ... e não esperei muito.
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Mal me sentara à secretária, vejo o “Turra” aparecer à janela, sem vidro, dispondo apenas de rede-mosquiteiro, que ficava metro e meio à minha direita. Só nessa altura o conheci. Vinha de tronco nu com a G3 pendente. Não era alto, mas era muito musculado, peito tisnado pelo Sol e uma farta barba preta que contava largos meses de campanha. O todo era manifestamente agressivo, o olhar frio e determinado. Os fumos do álcool pareciam ter desaparecido.
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Olhou-me, atónito, e perguntou: “Onde está o filho da puta do oficial de dia?” Respondi-lhe que o oficial de dia estava a dormir no quarto ao lado e, percebendo a razão da sua perplexidade, disse-lhe que o ia chamar. Fui, por isso, acordar o Engenheiro T., que dormia o sono dos justos. Levantou-se estremunhado, vestiu, sobre as cuecas, a camisa com os galões de Capitão-tenente maquinista naval, enquanto, num minuto, eu tentava explicar-lhe o essencial da situação.
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Voltei ao gabinete, seguido pelo Eng.º T., oficial, já então, com o cabelo todo branco. A estupefacção do fuzileiro aumentou. Tinha na sua frente dois oficiais bem diferentes daquele que lhe dera voz de prisão. Encarando-me, perguntou novamente: “Onde está o filho da puta do oficial de dia que me mandou prender?” Respondi-lhe que o oficial de dia era o Comandante Tomás e que eu estava a fazer o meu turno de serviço.
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O fuzileiro ainda proferiu mais duas ou três ameaças, mas, visivelmente, a convicção e a fúria interior iam diminuindo. Disse-lhe então, pausadamente, que não fizesse mais disparates e que me entregasse a arma. Vendo-o hesitar, dirigi-me para a porta, abri-a, saí e encontrei-me com ele, de G3 sempre pendente, à esquina do gabinete. Ainda hesitou um pouco, murmurou algo que não entendi e, muito lentamente, levantou a arma e entregou-ma. Verifiquei depois que tinha uma munição na câmara.
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Recolheu à cadeia militar na cidade, onde ficou sob prisão. No dia seguinte, questionado por um fuzileiro amigo, que lhe perguntou o que teria feito se tivesse dado de caras com o oficial que o mandara prender, ainda respondeu: “Enfiava-lhe uma rajada entre os cornos”! Redigindo a ocorrência no Livro do Oficial de Dia, reflecti, fazendo o balanço do ano que findava, que o tempo não passa nunca sem deixar rasto. Desse ano ficara-me pelo menos uma hora de sorte e uma história para contar.
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O “Turra” foi evacuado para a Metrópole e nunca mais soube o que foi feito dele. 
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sexta-feira, 11 de julho de 2008

Convívio entre Abril e Maio (14) - Até ao lavar dos cestos ... (2)

Building a rainbow de Tito Salomoni

D'ali e D'aqui: Massacres em Angola - 1961- pontos de vista


BloggerQuimbanze disse...

Aconselho a leitura do livro Quitexe 61 - Uma Tragédia Anunciada de João Nogueira Garcia

Podem ser lidos extratos em

http://quitexe.blogs.sapo.pt/

e nos blogues associados.

Boa tarde, Vítor Nogueira

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Resolvi colocar a referência ao livro do meu Pai, infelizmente já falecido, pois se relacionava quer com o conteúdo do texto que trancreveu, quer com as notas que colocou. De facto “descobriu-se” agora, com o programa televisivo sobre a guerra colonial que os brancos, em Angola, causaram chacinas nos meses seguintes ao 15 de Março. Ora o livro que o meu Pai publicou em 2001 já denunciava esses crimes, embora tenha omitido muita coisa por “pudor de as contar seja a quem for” . Por exemplo, este episódio, que não transcreveu para o livro:

Reconhecimento

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“Corre o mês de Abril de 61 no Quitexe. O tractor, que eu havia emprestado para os trabalhos de abertura da pista para as avionetas, continua ao serviço da Administração. Mas, entretanto, alguém me vem informar que o pretendem utilizar na abertura de valas para enterrarem os pretos que vão sendo mortos na repressão cega, desenfreada e absurda da revolta. Faço-me ouvir:

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- Quem os mata que lhes abra a cova! Com o meu tractor, não!

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Retiro a máquina e guardo a chave. Ninguém se atreveu a questionar-me.

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Os corpos dos negros são atirados da ponte ao rio Luquixe. Às vezes ainda moribundos, agarram-se aos ramos das árvores que bordejam o rio e assim se vão esvaindo até que a morte e a corrente os transportem rio abaixo.

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A indisciplina, que entretanto reina entre os brancos, causa alguma apreensão às autoridades.

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Neste ambiente, sem calor humano, os sentimentos são confusos. Não há mulheres, nem o sorriso ou o choro de uma criança. À noite matilhas de cães famintos, abandonados pelos seus donos cercam o Quitexe, uivando sem parar, pressagiando a desgraça e a morte. Os nervos sempre à flor da pele, o vinho, a cerveja e os instintos mais primários de cada um vão tomando conta do dia a dia do Quitexe. A vida humana, para alguns, tem apenas o valor do custo de uma bala, 7$50. Triste imagem de gente “civilizada”. Estes são, afinal, os valores morais emergentes da filosofia da guerra.

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É neste estado de alma que de 15 em 15 ou até de 8 em 8 dias se faz a rendição do comando militar do Quitexe. Após a saída do Tenente Simões Dias o comando passou a ser exercido por alferes milicianos. Fui cumprimentar o novo comandante, um jovem alferes. Tem uma postura mais militar e vem acompanhado de um sargento de enorme estatura e com um farfalhudo bigode (dos antigos, com pontas retorcidas).

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Só passados uns três dias volto a encontrar o Alferes Coimbra, no terraço do bar do Pacheco; eu aguardo, sentado a uma mesa, a hora do jantar. Dentro do bar reinava a confusão. Espíritos exaltados, com ameaças no ar tornavam o ambiente e o convívio desagradável. Eu tentava manter-me, o mais possível, afastado dessas confusões. O alferes e o sargento, cada um com uma metralhadora ligeira FBP na mão, vêm ao meu encontro. Fiquei assustado pois eles vinham com caras de poucos amigos. O Alferes Coimbra vem dizer-me que precisava mudar a valvulina e o óleo nos carros e queria saber se eu os tinha em armazém. Respondi-lhe que sim, nem era preciso ir confirmar.

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- Não, não! Quero ter a certeza! Vá devagar e não tenha pressa de voltar…

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Lá fui cumprir a ordem, mas fiquei intrigado com as palavras do Alferes. Passados uns bons minutos resolvo regressar para o informar da existência dos óleos.

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Quando me aproximo do bar ouço a voz do Alferes, em tom agreste, dizer que a indisciplina, as bebedeiras vão acabar. De ora em diante o Quitexe está sob controlo militar e ele, como comandante, não vai tolerar a continuação das ameaças e falta de respeito que põem em causa a penosa defesa da povoação. Fiquei cá fora, esperando que o militar acabasse a reprimenda. Quando saiu fui ao seu encontro para lhe dar conta dos óleos.

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- Senhor Garcia, eu não preciso de óleos nenhuns! Não queria era que assistisse ao que ia dizer a toda aquela gente e pensasse que as minhas palavras também eram dirigidas a si.

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Sem mais palavras, despediram-se com um até amanhã e regressaram ao Posto.

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As palavras do alferes comoveram-me. Finalmente alguém reconhecia o mérito e a bondade das minhas atitudes nesta guerra diabólica.”

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O meu Pai foi uma testemunha de tudo o que se passou nesses meses na região mais afectada pela violência, por isso, considero os seus relatos imprescindíveis para o conhecimento e compreensão da realidade. Todos os livros publicados por quem viveu os acontecimentos, ou são de jornalistas engajados com o regime colonial ou de militares. Faltava a voz de um civil que remou contra a maré.

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Cumprimentos

João Garcia


quinta-feira, 27 de março de 2008

Morte na Picada, post meu, o Tó Ninguém


Antunes Ferreira recorda África com o livro 'Morte na Picada'


LEONOR FIGUEIREDO

Henrique Antunes Ferreira, 66 anos, sempre escreveu sobre tudo. A sua "loucura", diz ao DN, levou-o a publicar "milhentos textos a esmo". Sobre quê? "Gastronomia, vinhos, erotismo, turismo, cultura, futebol."

Sem contar com as oportunidades que foram surgindo ao longo de quase 50 anos de jornalismo - onde desempenhou variadíssimos cargos de chefia, incluindo no DN -, e de ter percorrido 123 países do mundo.

Mas desta vez foi diferente, aconteceu depois da doença inesperada que o deixou KO quatro anos, quando assessorou o falecido ministro Sousa Franco. "Renasceu" lentamente, entretendo-se com o blogue que criara (travessadoferreira), onde regularmente deposita(va) ironia e graça de expressão, não tivesse a piada solta quando os dedos lhe correm pelo teclado.

Um dia "postou" uma crónica sobre os tempos da tropa em Angola que suscitou reacções imediatas e esfuziantes de companheiros da guerra, querendo que escrevesse mais sobre a sua vida em África. Antunes Ferreira tinha permanecido oito anos na antiga colónia, para onde fora mobilizado em 1966 por razões políticas, tendo apenas regressado depois do 25 de Abril. "Os amigos da tropa diziam que tinha muita leitura. Contava nessa crónica, como tinha sido o embarque para Angola, 40 anos antes, com mais 1784 homens fardados no cais de Santos, deixando para trás terras natais, famílias, namoradas, amigos. E contei sobre esse formigueiro de gente a despedir-se, com muitas lágrimas à mistura."
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Foi escrevendo. À medida que Antunes Ferreira ia colocando novas crónicas, recebia comentários de como era giro recordar. O desafio de publicar apareceu no tempo certo. Ele estava a delinear um romance que não estava a agradar-lhe. "Quando já ia nas 40 e tal páginas, pus de parte."

Após insistências, concretizou este livro. "Foi muito bom. Matou-me a sede de escrever..." E confessa: .
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Só três das histórias são verídicas. E não posso dizer mais. O resto é ficção." Morte na Picada inclui fotografias do repórter fotográfico Fernando Farinha, antigo colega do Diário de Notícias e será apresentado no dia 15 do próximo mês pelo jornalista Joaquim Furtado.|

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domingo, 2 de setembro de 2007

SOMBRA DA GUERRA COLONIAL


Sanfona dum raio


Antunes Ferreira


S
ou de Boivão. Não entendo esse franzir da testa. Toda a gente sabe onde fica, isto é, quase. É uma freguesia de Valença, que continua a mirar Tui. E faço parte do Rancho Folclórico de lá. Fazia. É melhor explicar. Hoje faço parte da Companhia de Caçadores que está colocada em Pedra Verde. Assim, só quando voltar ao Puto é que também voltarei aos viras e aos malhões. Até lá, a música é outra.

Os instrumentos são muito diferentes. Não cavaquinho, sanfona, ferrinhos ou bombo. Não senhor. Há costureiras, há granadas de mão, há G3, há bazucas, há morteiros, todos afinados para a guerra mas desafinados para a música. Sons completamente diferentes, diapasão diferente, decibéis diferente e por diante. Mais a mais, sem pauta, sem claves, sem colcheias.

Estão, se calhar, admirados de eu saber tudo isto no que ao musical diz respeito. Mas, se eu vos disser que alem de instrumentista e bailador, também era ajudante do regente, então percebem. Até já substituíra o maestro por algumas vezes. Não foi muito difícil. Com batuta devia ser muito mais; mas, nestas andanças das danças não se usa o pauzinho.

Ah, é importante que diga para completa elucidação de todos vós, que a minha conversada, a Maria dos Anjos, também faz parte do grupo. É bailadora e muito gira. Fica-lhe bem o vestido de noiva que usa nos espectáculos. Roliça, alta, bonita, tem tudo o que uma mulher deve ter e nos sítios do costume. Não conto mais nada, senão lá volto à pívea aqui do mato. É o que há.

É engraçado. O contraste do branco da vestimenta com os outros, vermelhos, fica-lhe bem. Muito bem mesmo, As arrecadas são, até, mais vistosas. Se calhar é do olho do artista, cá do Epifânio que sou eu. Epifânio dos Santos Carvalho, um criado às vossas ordens. Aliás, bem criado, com catequese e tudo, que o meu Pai que Deus tenha e a minha querida Mãe não eram de modas.

O nosso capitão Salvado, quando estávamos na especialidade de Caçadores Especiais, na Amadora, disse-me que levasse o acordeão para Angola. Assim fiz. Já no barco fora uma amante dedicada, sem protestos nem amuos, sempre à disposição. Sanfona dum raio! O Nunes, sapateiro na vida civil, classificara a instrumento. Melhor do que uma mulher: está sempre de perna aberta. E não tem o Benfica todos os meses…


Aquelas do António Mafra

Quando andámos a construir os jotacês, a estender o arame farpado e a cavar os abrigos, mal dava a noite, era um primor. O pessoal pedia-me coisas do arco-da-velha. Ó Epifânio, sabes aquela do António Mafra, no baile da dona Ester? Sabia. Sei, meus, sei. Com o Dom José de Vicente; que é de São Pedro da Cova; pra mostrar qu’inda é valente; foi dançar a bossa nova. Escorregou no soalho, caiu foi pró hospital; eram praí sete e picos, oito e coisa nove e tal.

E o carrapito da Dona Aurora que é tão bonito – fica-lhe bem. E o papagaio, tu não te metas na vida do Joaquim; ó papagaio, tem cautela ó papagaio; que a bebedeira do velho te transforma em pinguim. Outros pediam a Eugénia Lima. Alto lá, tive de explicar-lhes que era uma Senhora, rainha do acordeão, eu era apenas um mísero tocador de sanfona.

Mesmo assim, o breu era mais fácil de passar. Até ao primeiro ataque. Os gajos vieram de mansinho, se fosse o mestre diria mesmo soto você, piano, piano, pianísimo, chegaram à beirinha do arame e vá de despejar chumbo em quantidades industriais. O furriel Mendonça nem soube do que morrera, um buraquito no meio da testa e a parte de trás da cabeça – zero.


O Quim Cuecas, assim mesmo, natural de Malange, terra do feijão branco, que se auto-apelidava Castanho e era da incorporação da Província (colónia não havia), depois de passada a fuzilaria, disse tratar-se de bala de ponta romba, para elefante, entra direitinha e sai a romper tudo, mioleira e ossos, Cortam a ponta, os filhos da puta.

Abatidos foram, ainda, o Chico Rodrigues, o Caté, meu vizinho de Gondomil, ficou um passador, as tripas de fora, duas ou três rajadas de Kala ou outra assim; o António Martins, de Viana uma morteirada, andámos a varrê-lo para juntar os bocados dele e a minha concertina. Furada de lado a lado, inchada da chuva que caía, pior do que vaca prenha.


A todos se fez o funeral, com o capitão capelão, um tal Bragança. Todos foram ensacados e metidos nos caixões que ali tínhamos, com o nome e o endereço pregados por fora, a fim de seguirem para a Metrópole. Menos a desditosa sanfona. Bem tentou o Raimundinho, que arranjava pneus na civil e não era especial adepto do mulherio, tapar os buracos, nas zonas dos foles. Em vão.

Rabo de homem

Por isso, agora, já não há. Nem instrumento, nem música, nem cantigas, nem mulherio. Dizem que o Raimundinho dá um jeito… Eu nunca tentei. Rabo de homem tem pelo como o do macaco. Bom, se calhar menos. Mas, mesmo assim, como nunca experimentei… Porra! Nem conto!

Hoje estou de sentinela. Nesta altura do campeonato, o hoje repete-se indefinidamente. Com os turras aqui ao lado, a gente não os vê e, de supetão, dá merda. Sobretudo, de noite, como é o caso. Mal sonhava eu, em Boivão ou em Valença onde trabalhava de barbeiro – bom, para ser verdade, de praticante de – que meses depois estaria aqui, de quico na cabeça e arma aperrada, temendo ter de soltar um quem vem lá?

Mas, prontos. Um homem tem de pensar noutras coisas, e estar alerta ao mesmo tempo. A esta hora, por certo, o Rancho não está a actuar. São três e meia da matina e a Maria dos Anjos já deve estar no segundo sono. Deve estar a sonhar comigo, penso. Na última carta diz-me que está à minha espera, mas que não vá de licença, é caro e temos de juntar para o casório.

Pode ser que esteja descascadinha, é tempo de calor, só com o lençol por cima, nunca a vi assim, mas é como se tivesse olhado, guloso. Pelo andar da carruagem, deve ser um espanto, estendida, oferecida, eu a cobri-la de beijos, pau no ar, agora é que vai ser, amor, não te assustes, que o padre Joaquim já nos deu a bênção. Pronto.

De pau feito estou eu agora e sem a possibilidade de o desfazer. O meu padrinho Zeferino, que fez as vezes do meu falecido Pai, um dia disse-me que um homem de pau feito não é a mesma coisa que um homem feito de pau. Gostei. Aprendi. Os cabrões são meninos para vir por aí, nos bicos dos pés como as dançarinas e darem-me cabo do canastro. Era bonito, um tipo morto de piça em punho…


Vai clareando. Ouço um restolhar. São eles. Não são. É o Freitas de Sanfins que me vem render, acompanhado do cabo Felismino. Barriga. Tomates. Senha e contra-senha. Tudo nos conformes. Vou até à caserna, estou cansado de tamanha vigília, mas não tenho sono. O maluco lá de baixo também acalmou, é capaz de se preparar para dormir. Se não pensar na minha conversada, é gajo para isso.

Ainda não se pode dar umas fumaças. Tiro um AC do maço, espeto-o na beiçola, a fingir que sim. Caralho, isto é tudo um fingimento. São as colónias que não são, são províncias ultramarinas. Nas esplanadas em Luanda é o vinho que não é vinho, é banga-sumo. Ainda por cima, de abacaxi. Que devia ser ananás, mas é só abacaxi. Que mistela. É a PIDE que não é, é a DGS. Nisso, o Marcelo é que a sabe toda. Com as conversas em família vai-nos enrabando de fininho. Ganda cabrão, igualzinho ao Salazar.

O tio-avô Serafim

Sabem? Eu, para alem de gostar da música, do som, do espectáculo, também gosto do meu tio-avô Serafim que lá em Boivão dizem que é comunista. O velhote, com setentas e muitos, foi-me contando ao longo dos últimos anos, a sua vida durante a República. A primeira, avô (sempre o tratei assim, não conheci nenhum dos verdadeiros), a primeira.

O menino cala-se muito caladinho. República só há uma; melhor, só houve uma. Isto que temos é caca pura. Que rima com ditadura. Aprende, meu catraio, deixa de roçar os fundilhos pelos bancos, levanta o cu e aprende que eu não duro sempre. O Senhor Serafim fora contínuo num ministério, conhecera o Bernardino Machado, o Afonso Costa, o Manuel de Arriaga, o Brito Camacho, o Cunha Leal. Ensinou-mos todos. O Sidónio Pais, não. Era um bandido.

Toma nota, rapazinho: eu não sou comunista, mas podia muito bem ser. Só que não sou e está dito. Mas estes sacanas situacionistas, se um homem não entoa loas ao Salazar – é comunista. Lembro-me perfeitamente de ele me dizer que não podia ouvir o quem não está connosco… E acrescentava, entre duas gargalhadas acintosas – é contra nosco!...

Deu-me a ler o Capital do Marx, uns discursos do Lenine, mas também outros do Churchill. É um grande homem, não é da Esquerda, mas é um tipo com tomates, comentou. E oferecera-me umas Illustrações Portuguezas, sem e já com fotografias. Fez-me descobrir o assassino Hitler, como lhe chamava e deu-me uma História da Guerra de Espanha, editada na clandestinidade. Com um prefácio de Manuel Azaña.

Sim, porque o Leopoldo Nunes, o José Augusto – que depois viria a escrever uns escarros intitulados carta de Paris – o Cunha Júnior o Aprígio Mafra, eram todos pró Franco, o galego caganito, e as reportagens deles eram fascistas, dizia o avô Serafim. Até o Norberto Lopes, o Portela e o Mário Neves, mais inclinados à esquerda…

O Gaiolas corneta já tocou para o pequeno-almoço, que o Cuecas já nos ensinou que é o mata-bicho. O sol levantou, vai estar mais um dia de calor de ensopar um marmanjo. Com autorização do nosso capitão, os gajos que saem de sentinela podem ir comer sem fazer a barba. E o homem é duro como o aço, não brinca em serviço, mesmo aqui na mata, se um tipo mija fora do penico – é ecada à máquina zero. Do que me encarregou, o que é chato. Até para mim.

Uma mina – das nossas

É então que estala a maka. São só tiros e granadas, a esmo, para cima da malta de caneco na mão. Aproveitando a rendição das sentinelas, os paneleiros vieram atirar-nos como a bonecos de feira. Enfio-me num buraco de morteirada, mas saio, logo de seguida, rastejando até à caserna, para ir buscar a canhota. Aqui é o Inferno, cabrões dos mafarricos.

Quando puxo a culatra, sinto-me no ar. E estou. Pisei qualquer coisa e voo até cair de borco. Não me lembro de mais nada. Acordo no Hospital Militar em Luanda, o médico diz-me que tive muita sorte e só fiquei sem a perna esquerda, por baixo do joelho. Era uma mina, das nossas, caralho, das nossas. Para outros pisarem, que não eu. Mas pisei.

No resto está tudo bem, umas ligaduras, umas tinturas, umas sulfamidas, o pé que me resta engessado, mas não há-de ser nada. O clínico, que é major, conta-me que no Alcoitão me põem uma pata nova. Melhor do que a verdadeira, acentua para me animar. Tu que fazes? Para já, nada. Mas vais começar a fazer. Ginástica e tens de te habituar às muletas. E passas à peluda, logo que estejas bom.

Ele insiste: que fazes na vida civil. Barbeiro, ou seja, ajudante. Não tem problema, podes cortar cabelos e fazer barbas, tens os dois braços e as duas mãos. Se fosses carteiro, isso já era outra coisa, bem diferente. Assim, não te chateies. Vai tudo correr bem. Para os que lerparam acabou-se. Mas para os que ficaram, como tu, que não seja o pior. Vais arribar, moço.


Claro que vou. Quando sair do avião, outra loiça, o barco já foi, vou a mata-cavalos para Boivão, de táxi, nem olho para Valença, nem para a ponte, muito menos para a Galiza. Para ver a Maria dos Anjos, que deve continuar a ter os seios empinados como dois morros de mel. E para encontrar os outros, os amigos, o avô Serafim, dar-lhe um abraço dos grandes. À Maria dos meus amores, arrefinfo-lhe um beijo na boca – de estalo. Ou mais. Na frente de toda a gente, para que saibam que é minha, uma espécie de ferrete de marcar novilhas – mas sem dor, só doçura.

Depois, bom, depois, volto a Valença, visitar o patrão Gonçalves para lhe dizer que estou ali, torno à tesoura, ao pincel e à navalha. Mas, antes, durante uns dias, fico-me pela minha freguesia. Até porque, quero tratar da boda, mesmo que os pais da Maria dos Anjos enjeitem a novidade. Que, no fundo, não é nenhuma, é mais um fingimento a juntar aos outros.

O enfermeiro vem tirar-me a febre, vai na boca ou no sovaco? Aí mesmo meu sargento, sei lá por que cus já passou esse zingarelho. Mede-me a tensão. A outra, sem n, vai voltando só de pensar na moçoila que me espera. E, aí, uma dúvida. Quando ela me perguntar se volto para o Rancho – que lhe digo? Com certeza que não, nesses preparos, infelizmente. Dançarino sem perna, por melhor que seja a prótese (penso que é assim que se chama), corre o risco de pisar chão torto e inclinado. Viras, malhões e quejandos – acabou-se.

Já sei. Percorrendo-lhe a pele de pêssego, vou responder-lhe que sim. E acrescento logo que para tocar sanfona os dois braços chegam. E para a apertar ao peito – também. A perna? Que se foda!

(Fotos da guerra: 4CCE, a quem agradecemos)

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reproduzido por gentileza do Antunes Ferreira in travessadoferreira

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Alguns dos contos foram reproduzidos no Kant_O: O Rio e a Sorte , O Cunhama ai ué e
Boca Calada

e neste Ao Sabor do Olhar: Grades e Copos e Carne Fresca .

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Mas repito, nada como visitar e deambular pela travessadoferreira , onde há muitos e variados escritos, não só dele como d'outrem.

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NOTA - No texto fala-se nos cigarros AC, uma marca de Angola. E esta referência fez-me lembrar dum comentário do meu pai, à mesa, em Luanda: que Fulano «tinha sido preso pela PIDE porque numa cervejaria puxara dum maço de AC, olhando para este e comentando "Adeus Craveiro"» e mais o meu pai não contou ficando eu, miúdo de 12 anos, sem saber porque carga de água o homem tinha sido preso por se despedir do Craveiro Lopes, substituído pelo Américo Tomás na Presidência da República, em confronto este com o General Humberto Delgado.

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Só mais tarde, já em Portugal, soube das divergências políticas entre o PR que fora substituído e o efectivo governante-mor, Salazar, apoiado na PIDE. Sempre ouvi dizer mas não sei se é verdade, que em Angola o vencedor teria sido efectivamente o chamado General sem Medo. (Victor Nogueira)

terça-feira, 28 de agosto de 2007

SOMBRA DA GUERRA COLONIAL



Carne Fresca

Antunes Ferreira

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T
irou a folga do gatilho e voltou a apurar a mira. A palanca, imóvel, levantou o focinho, parecia cheirar algo, não sabia o quê. Raspou o solo capinado, com um tanto de nervosismo, os cascos restolhando nos cotos da erva segada. Lingrinhas pensou um, dois milésimos de segundo, quiçá três, mesmo cinco. Assim faziam os touros mansos antes de investirem. Por isso disparou.

O animal saltou para a frente, como que começando a corrida, mas ficou-se no arranque, como que suspenso no ar, parado no tempo e no espanto. Caiu de lado, esperneando, nos estertores de quem acaba, seja bicho ou homem. Caralho, Lingrinhas, deste-lhe na mouche! Dois pontos para o Lisgás! Porra, essa foi do suco da barbatana!

Os cinco soldados – tinha saído uma secção incompleta a ver se abastecia de carne fresca a companhia, farta de enlatados, de bacalhau sem batatas e linguiça em pão duro e bolachas Capitão – quase o levavam aos ombros. Ó pá tu és um meia-leca, se os turras te atacassem, punham-te debaixo do braço e ala que se faz tarde… Mas, no fogacho ninguém te bate!

Por alguma razão o capitão Malveira tinha mandado o Cristóvão Lingrinhas, mais o quinteto de camaradas ao açougue da mata. Era quase certo. O trinca-espinhas traria bifes e costeletas e lombo e perna e todas essas coisas que um homem quer ter quando voa para o rancho. Já não apanhamos mais nada, o eco assustou os animalejos, vamos embora.

Nem pó. O caçador cheirava presa, algo mais viria para enriquecer a despensa do aquartelamento e os desejos gastronómicos da soldadesca. Os cinco, entre o medo de uma qualquer merda – já bastava o que bastava – e a gula de cascata na boca, começaram a falar fininho, por causa das moscas – e do resto.

Andavam por ali uns quantos cabrões, que se intitulavam a eles próprios guerrilheiros, comandados por um tipo que infundia cagaço ao mais pintado. Era um tal Mata-Mata, mulato, dono de uma carabina Mauser de precisão, com mira telescópica, prenda do pai branco, que onde punha o olho punha o chumbo. Era igualmente caçador, mas de soldados tugas, não se sabendo se se dedicava a outras sortes cinegéticas.

Ó pá, talvez fosse mais seguro pegarmos no animal e leva-lo para a esfola e a panela. Basta pensar que nos podemos meter em trabalhos, uma alhada nunca vem só. Depois, com estes filhos da puta, nunca fiando. Chico Cristóvão nem lhes dava troco. Vamos apanhar a palanca, meter-lhe umas varas para ser mais fácil de transportar, tipo padiola. Quatro levam-na para o quartel; o Sebastião vem comigo. Não se desorientem, seus atrasados mentais. E voltem logo para levar mais caça.

O silêncio ouve-se

Sebastião deitou contas à vida. O sacrista do Lingrinhas ainda lhe arranjava uma valente enrabadela. E os pretos, dizem as meninas do Bairro Operário, têm a piça grande. Da-se, nem pensar nisso que lhe sobe um arrepio pela espinhela acima. Ó camarada, e se nos puséssemos na alheta? Medricas, sempre me saíste um bom mariquinhas pé-de-salsa. Aqui não morre ninguém, muito menos te tocam no cu, estamos quites.

Mas de alimária – nada. Até os macacos, empoleirados em seus galhos, deixaram de guinchar. O silêncio na mata ainda é mais opressivo. O silêncio ouve-se. Tal como o barulho. Os dois deitam-se no leito de folhas secas da floresta. Vai um cigarrito, Lingrinhas? És mesmo uma besta-quadrada! Lume aqui? Mas foste tu que acabaste de dizer que não nos pode acontecer nada. Cala-te e nada de piriscas.

Emboscados, por entre troncos apodrecidos, pensavam que confundiam o camuflado com os tons do que os rodeavam. Esperavam. Presa ou os transportadores de carne fresca. Quem seria o primeiro? Sebastião, a quem chamavam na companhia o come-tudo, sem ou com colher, lembrança da canção dos putos, avançou um tímido estou cheio de larica. O comparsa nem lhe respondeu. Se calhar nem lhe ligou nenhuma.

A ramaria deixava coar uma luz cada vez mais esparsa, avermelhada do poente. Um tiro, um só. Sebastião nem soltou um pio. Pedaços da mioleira esfacelada saltaram sobre o Lingrinhas que se enfiou ainda mais, se possível, pela podridão vegetal. Segurou com força a G3 de mira também telescópica, como a da arma do Mata-Mata. E se fosse o gajo?


Houve um tropel de cascos misturado com botifarras calcando o solo pegajoso. Eram os militares que voltavam e tinham ouvido a detonação. Pelo ruído, corriam. Mas, por trás de uma moita agigantada surgira um burro do mato, grande e encorpado, fora do normal. Um verdadeiro desafio para o Portuga. Uma provocação.

O Chico não podia levantar-se, o bandalho fuzilá-lo-ia, mas o vício era desmesurado. Ou lhe atirava a matar ou as entranhas saíam-lhe pela boca, pelo olho de trás, pelos poros. Os soldados gritavam por ele, aguenta-te Lingrinhas que estamos a chegar, não te vás abaixo! E chegaram, ofegantes, disparando um tanto à toa, assim os turras não respondiam, tinham medo de dar a posição deles. Ou dele, pensou Cristóvão, enquanto mecanicamente disparava – mas sobre o animal. Qual Sebastião, este caiu de chofre, sem qualquer hipótese.

Já um pouco afastado ouviram um berro de ameaça – eu volto! Promessa sangrenta que sabiam que iria ser cumprida. E uma gargalhada de bazófia, mas também da consciência do medo que infundia. Era o Mata-Mata, não havia dúvidas, a maneira de falar dos brancos, mulato fino, voz rouca. Ele voltaria, não se sabia quando, mas voltaria. Cumpriria o prometido, era homem de palavra.

Dois cadáveres

Regressaram os soldados, com dois cadáveres aos ombros: o burro do mato e o Sebastião. Ou vice-versa. A recepção que se antevia eufórica no pressuposto de mais carne fresca, enlutou-se com a carne também fresca – mas do magala desditoso. A tudo assistia o Lingrinhas, esbodegado, como se lhe tivesse passado um cilindro das estradas por cima, lágrimas ensacadas, um homem não chora.

O capitão Malveira chamou-o ao seu «gabinete» numa jotacê e perguntou-lhe se achava bem o que tinha causado. O Sebastião, de resto, era um gajo porreiríssimo e um paz-de-alma. Tocador de acordeão. Se não tivesse sido a tua estúpida ideia de dar mais uns tiros, o rapaz ainda estava vivo. Mas tu pensaste, cabeça de atum em lata, que estavas no Parque Mayer com as putéfias a regougar – vai um tirinho, freguês? A pensar morreu um burro, meu sacana!

Não estou a gozar. Isto não é para brincadeiras. Estou fulo. Estou fodido! Vou mandar levantar-te um auto de corpo de delito por homicídio involuntário. O nosso alferes Lucindo trata disso. Vais ver como elas te mordem. Nunca mais vais esquecer isto. E, a partir de agora, só sais com a canhota para combate. Meia volta, volver. Rua!

Estava metido numa boa alhada. Maldita a hora em que cheirara presa. Maldita a hora em que a mãe o parira. Esperava-o um futuro bem negro. Um auto de copo de litro, como os taratas gostavam de arremedar, atropelando a versão correcta. Como os que diziam auga em vez de água. Caraças, todo este torvelinho de ideias lhe vinha à cabeça – de atum em lata?

E o Sebastião? E a mulher do Sebastião, Gracinda de seu nome, 23 anos empinados? E a filhinha do Sebastião, Laurinda, a Laurindinha, doze meses incompletos, fazia anos a 22 de Setembro? E os pais do Sebastião? Que fora um camarada ali para as curvas, não dizia mal de ninguém, nada de coscuvilhices, nem intrigas, muito menos fum-funs ou gaitinhas. Estava para ali a cismar no seu futuro, quando o do desgraçado não era nenhum. Apagado, como fósforo queimado.

Uma grande cagada. Não tivesse ele mandado os outros levar a palanca e o Sebastião que ficasse com ele e outro galo cantaria. Assim, o galo fora do come-tudo, para ali espapaçado nas folhas podres, descapotado, os miolos espalhados em redor, até nele, Chico Cristóvão. Um arrependimento, tardio e enviesado, espalhava-se-lhe pela casquimónia. Que lhe restava agora? Nada. Mas, muito menos do que ao Sebastião.

Não te mortifiques

Muitos praças olhavam-no de viés. Já não bastavam os terroristas, também este cabrão, resmoneou o Marques açoriano da Fajã, às vezes nem se entendia o que dizia, mas agora não. O Fagundes, apontador de morteiro, agarrou-lhe um braço e afastou-o da censura quase generalizada. Ouve, Lingrinhas, ouve. Ouve-me e não me copules. Escuta-me filho duma pega.

Toma nota. O destino já tinha marcado a hora do Sebastião. Não tens que te mortificar e assumir a culpa. Limitaste-te a tentar trazer mais paparoca para os dentes da malta. Estivesse eu no teu lugar e, se calhar, fazia o mesmo. Essa gajada – deixa-a falar. O que tu bem sabes é que eles cobiçam-te a pontaria. O olho, salvo seja. Atira para trás das costas e não te enterres a ti próprio.

Enterrar. Enterro seria o do Sebastião, caixão desembarcado no Puto, a viúva em ânsias, os pais amarfanhados, a menina no carrinho, já dando os primeiros passos, nunca junto à cova do pai. Assim, não vais a nenhum lado, Lingrinhas. Assim consomes-te por dentro, comes-te a ti próprio, dizia o Prof. Candeias que serias um autofágico, lembras-te?

De passagem: enterrar sim, mas outra coisa, naquela moça do bengaleiro do cinema Império, mestiça danada, calças justas, segunda pele a azul ponteado, um par de mamas viçosas e tesas, sem sutiã, que nós bem lhe vimos os mamilos desenhados na camiseta encarnada debruada a preto. Aí sim, aí enterrava até aos tomates e tenho a certeza de que ela se rebolaria como uma cabra no cio.

Repara Chico, e só estivemos em Luanda, no Grafanil, oito miseráveis dias e umas horas. A fita era a mesma, A Revolta na Bounty, com o Marlon Brando, mas fomos lá cinco vezes. Já sabíamos de cor o enredo, o motivo do desatino era a moça morena. De canela, Lingrinhas, morena de canela, mulatinha. Mau. Mulato era o Mata-Mata que enfiara o balázio na fronha do Sebastião. Ele dissera que voltaria. Quando o fizesse, ele, Chico Cristóvão estaria lá, à sua espera.

Com o rodar dos dias, as folhas do calendário que tinha à cabeceira - com uma louraça abonada e de peito ao léu, rapariga muito cobiçada ainda que de papel, frente à qual muito boa gente esgalhara uma pívia à maneira – foram-se arrancando. No mato, sem sanzala perto, era uma merda, e mais a mais as palmas das mãos não tinham cabelos. Mas era o que havia.

O fradalhão de Santa Comba

Filha da puta de guerra era aquela. O Fagundes, pela calada da noite, abria-se em palavras sussurradas – à sorrelfa. Os gajos tinham razão em quererem a independência. O Brasil era um exemplo. E os africanos estavam agora a dar cabo da colonização. Isto não são províncias ultramarinas, são colónias. Em Lisboa até há um bairro das colónias, se não sabes, aprende que eu não duro sempre.

E acrescentava, cada vez mais baixinho, que o maricas do fradalhão de Santa Comba – quem? – o Salazar, meu animal, o Botas, é que mandava o pessoal apanhar no cu, sacrifício ignóbil e inútil, porque aquilo ia acabar mal para a malta. Destas conversas de cobertor participava o Machado, sacristão na civil, até comentava que o Fagundes era comunista, igualzinho ao tio Serafim, que fora apanhado pela PIDE e estava a ferros em Peniche. Não sou, mas podia muito bem ser. Bons sonhos.


José Malveira, capitão de Infantaria (QP), decidira, face aos constantes ataques, agora já não apenas na picada, mas ao aquartelamento, que um pelotão reforçado iria montar uma emboscada, junto ao carreiro da água. Dali vinham disparos nocturnos e, até, pelo entardecer, barbaramente certeiros, eu cá seja ceguinho se não é o Mata-Mata.

Cristóvão ofereceu-se, o grupo de combate nem era o dele, mas foi. O comandante – águas passadas não movem moinho – aceitou, já que se tratava de acção de combate e a pontaria do Lingrinhas fazia muito jeito. E como em tempo de guerra não se limpam armas, o caçador seguiu. Fagundes, agarrado ao seu eterno morteiro, ainda lhe disse que não se devia ter metido naquilo pelo que quer que fosse.

Agachados, ajoelhados, deitados por trás de sebes de verdura húmida, os emboscados aguentaram horas. Que já pareciam dias, senão mesmo semanas. Nisto, um restolhar manso e suave, quiçá um descuido sem razão, entrou pelos tímpanos da malta. Eram eles, não havia dúvidas. Por gestos, passaram palavra. Uma secção por ali, outra por acolá, aqui ficam os restantes. Chico à cabeça da primeira, o alferes Janica em seguida.

Os guerrilheiros, sem disso se aperceberem, já estavam cercados. A um berro do capitão, voaram as primeiras granadas de mão, encheu-se a mata de fogachos, gritos e insultos, fumo e metralha. E sangue. Chico nem disparara. Mexia-se sorrateiro, pé após pé, arma em riste, dedo no gatilho. Pela cabeça – de atum em lata? – passava-lhe o Sebastião tocando o acordeão, nisso era um alho. Mas igualmente o desejo lancinante de encontrar o Mata-Mata, que devia andar por ali.

E, de chofre, ficaram cara-a-cara, espingardas expectantes, quase a dois metros um do outro. O Lingrinhas e o Mata-Mata. Quando dispararam, em simultâneo, ainda disseram um para o outro – é o Chico, porra!, é o Lourenço, foda-se! Ficaram de papo para o ar, a linfa vermelha esvaindo a vida aos borbotões, empapando o solo ele próprio revoltado.

Tinham andado na mesma escola, veio depois a saber-se, o Francisco da Costa Cristóvão e o Lourenço da Silva Mendes tinham feito a primária juntos, sentavam-se na mesma carteira. Eram como irmãos, melhor, eram amigos. Que diria a Dona Alzira se soubesse que se tinham matado um ao outro, em Angola, na mata, no caminho para o Quitexe?

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in http://travessadoferreira.blogspot.com/

segunda-feira, 20 de agosto de 2007

Grades e copos







* Antunes Ferreira


F
iapos esparsos semelhando escorridos de algodão sujo avançam sem grande vontade pelo azul álacre dum céu a precisar de retoques. Detrás das grades grossas de pau-ferro, Jacinto perscruta o horizonte, mãos enclavinhadas nos madeiros cruzados que parecem mais fortes do que se de metal fossem. Que porra de sorte a sua. Dois anos e picos de comissão, mato fora mato e, que sacanice, quando se chegava à cidade, uma puta duma emboscada e caçado à mão. Foda-se, que era pouca sorte.

Para trás ficavam recordações, muitas boas, algumas más. Lembranças e picadas, capim e saudades, terra vermelha e peles morenas e acetinadas, sangue e Macieira, burros de mato e leite em pó, funje e minas, batatas e camoquina, ligaduras e dolca, unimogs e bacalhau. E grão. E azeite. E vinho canforado. E vinagre. E jindungo, pica mas dá gosto. Ah, e quiabos. Que no Puto não há.

No chão de terra batida da cela está um prato de alumínio amolgado onde lhe puseram uma mistela de peixe seco com ervas boiando em óleo de palma espalhada por cima de arroz empapado. Frio. Também, com uma caloraça daquelas, que mal fazia se aquela bodega estivesse gelada, saída do congelador de uma geladeira imaginária? Esquadrilhas de mosquedo aterram na massa informe. Tem fome o Jacinto da Cruz Felperra, mas de outro manjar que não daquilo.

Está completamente desperto. Quando o tinham apanhado, ia ele a alapar-se na berma enlameada, zuniam tiros por toda a parte, levara uma porrada no toutiço e perdera os sentidos. Quando voltou a si, imerso numa escuridão bolorenta, doía-lhe a cabeça, mas não estava ferido. Apalpara-se para ver se tinha alguma coisa partida, um braço, uma costela, sabe-se o quê; apenas um galo no alto da cachimónia.

Por estas bandas o tempo é incerto, mais seguro no cacimbo, mais instável no calor com chuvas. E que chuvas. Portanto, não lhe admiraria que os farrapos que deslizam no astro, quais trenós em neve compactada, daqui a nada se transformem em borrasca de criar bicho. Mas, que raio de lembrança a dos trenós. Só faltavam as renas e o barbudo, e ainda nem sequer se estava no Outono.

Que aqui, Outono, Inverno, Primavera ou Verão pouco ou nada tinham a ver com iguais termos em Portugal. Cuidado, na Metrópole, já que ali, em Angola, também é. Uma Pátria una e indivisível, do Minho a Timor, nem mais. Nem menos, óbvio, isso queriam os comunas, roubar-nos as Províncias Ultramarinas, territórios sagrados que os antepassados ilustres nos tinham deixado – para que os guardássemos e acarinhássemos.

Vai-se fazendo noite, o pôr-do-sol alaranjado foi um ar que lhe deu. Tem a boca seca, e a sede ganha esporas. Fome, nada, basta olhar o prato para que, mesmo que a tivesse, ela se fosse e depressa. Não há garrafa de água, nem cântaro, nem bidon, nem caneca, nem sequer folha de palmeira que a agarrasse. Encosta-se ao quadriculado da janela e pede água em voz alta. Quase que berra.



Um preto claudica na sua direcção, saído de cubata mal amanhada. «Qué que você queres, seu portuga?» «Um pouco de água…» «Faz favor, também por cá usa, portuga.» Mancando, o homem volta para a cubata, onde entra, um tanto agachado porque a porta é pequena. Regressa com uma cabaça, entrega-lha por entre as grades. «Não gasta toda, tem de durar até amanhã», avisa-o, displicente.

Agora já é amigo?...

«Olha lá, amigo, e onde faço as necessidades?» O coxo olha-o enquadrado nas barras cruzadas. «Agora já é amigo?... Antes, turra…» Jacinto não sabe que fazer nem que dizer. Tem razão o gajo. (A gente a pensar que estes macacos eram todos burros. Olha-me só pra este. Amigo? Nem sequer conhecido, pensa ele e acertadamente). «Vai-lhe meter um balde e você fazes aí mesmo. Mas não chateia, senão mija e caga no chão…»

Está visto que assim não vai longe. Aliás a prisa nunca o deixaria ir onde quer que fosse, mais a mais com guarda ainda que manco. O homem não tem pinta de carcereiro. Mas, à bandoleira, traz uma kala, e dois carregadores redondos pendurados do cinto. O vestuário puído, está, porem, limpo, dentro do possível e do local, que não prima pelo brilho.

Outra ideia. Rosa pulcra. Na missa dos domingos, em pleno Inverno, o prior bufando do calor da braseira, faz um frio de rachar, afirmava-o com mais obrigação do que convicção. Jacinto bem gostava, agora, de voltar a experimentar nem que fosse uma vez apenas, aquela lida de sacristão que vivera durante um mês, no lugar do Pedro Carrapato que fora ajudar a mãe na azeitona.

Mas agora não se trata disso. Se as recordações são como os baloiços, vêm e vaiem, é melhor afogá-las para que não tenham um só sentido, pior que for apenas de vinda, sem volta. Porque ele quer voltar, ele vai voltar. Há um furriel miliciano, o Marques, que tem a mania de cantar sozinho, sem assistência, no banho de regador, mas em voz baixa, baixíssima, uma coisa que fala num soldadinho que vai numa caixa de pinho ou algo assim.

Porra! Ele vai voltar mas pelo seu pé, abrenúncio, cangalheiros e gatos-pingados não são para aqui chamados, caralho. Do bolso das calças rasgadas do camuflado sai como em passe de mágica de circo, um maço de AC, ainda que amarrotado. Está cheio, ou quase, pois antes do acontecido, ainda tirara umas fumaças, antes da cacetada. Há uns dois ou três cigarros partidos, é por um deles que começa.

Vai uma passa?

Não olha para ele, mas sabe que o seu guarda está de lâmpadas esbugalhadas olhando a pirisca. Como quem não quer a coisa, estende o braço entre os madeiros e na mão a outra metade do fumante. «Vai uma passa»? O coxo agita-se frenético, como aquele tipo de Manteigas que apanhara um raio que não o partiu, mas quase.

Claro que vai. «Tem lume»? O homem apanha um tição da fogueira já a cair para as cinzas e acende-lhe o meio cigarro, sé depois o dele. «Obrigado». E parece-lhe que se derreteu aquele bloco de gelo que o guerrilheiro era. «Olhe, portuga, não sabes quanto tempo eu leva sem fumar. Muito obrigado» reforça. Engole tanto fumo que se engasga e tosse escandalosamente.

«Pareço um miúdo que ainda não aprende como se fuma»… «Deixe lá isso, companheiro, a gente sabe o que são necessidades. Há quem diga que é um vício. A ser assim, é um pequeno, porque também há vícios grandes». E Jacinto ri-se da graçola que aprendeu já não sabe onde. «Patrício, eu chamo Kitombo João, andei na escola industrial na Huila, mas não lhe acabei».

«Pois eu sou o Jacinto da Cruz Falperra, natural de Moncorvo, Trás-os-Montes, se um dia lá for vai provar um buxo de se lhe tirar o chapéu, feito pela minha mãe, acompanhado dum verde tinto ainda melhor. Tiro e queda». «E o que é isso do buxo»? «É assim a modos que um chouriço mas mais gordo e sem tanta gordura. É de comer e chorar por mais»…

«Ó seu Jacinto, lhe gosta de burro do mato»? «Compadre, não me fale nisso senão começo para aqui a babar-me. Se gosto. Assado na brasa, com umas batatas metidas no borralho, com casca, é um vê se te avias. Burro do mato é melhor do que vitela. Um nada acima, só a posta mirandesa». O Kitombo ri-se, faltam-lhe três dentes, quase igual ao seu avô Faustino a quem já se foram quatro da frente. Tal como a este.


«Se tu me promete que não foge eu lhe abro a porta e vamos assar uma perna inteira. Cacei-o ontem, ainda está fresco, coberto com folhas de palmeira por causa das moscas. Tenho sal, óleo de palma e jindungo. Alho não tem. Mas não faz mal, não achas, portuga». «E eu ralado com o sacana do alho. Faz tanta falta como uma viola num enterro».

Não foge, seu Cruz

Agora sai uma gargalhada tonitruante, o João que também é Kitombo – raio de nome, mas o dele, Falperra também não é grande espingarda – quase cai no chão de tamanho gozo. «Não foge, seu Cruz» e vai abrindo a porta, levanta o travão que é um toro pesado, vê-se pelo esforço do preto. Jacinto sai, aspira o ar e dá-lhe uma mão para encostarem o tronco à parede de terra batida.

Não é uma trégua – é uma confraternização. Para eles a guerra não parou, já foi. «Se tivesse aqui o meu bornal outro galo cantaria» suspira o transmontano. «Olha tu, ó Jacinto, o bornal está ali, na palhota, no meio das tuas coisas que te tiraram quando te amachucaram o toutiço. Porquê»? «Já vais ver meu sacana». E corre a buscar algo de especial. Oxalá não se tenha partido…

Não partiu. É uma garrafa de uísque The Monkies, o alferes Daniel diz que quer dizer… E o Kitombo interrompe «quer dizer os monges, os frades, essa gente de hábito. Mas estes bebem-se…» É a galhofa. Entre risadas dedicam-se ao assado, vira daqui, torna dacolá, mais óleo, «não abuses do jindungo que pica como o caraças».

Jacinto, quase inconscientemente, repara que o seu companheiro de farra gastronómica já não fala pretoguês, antes um português correcto, sem pronúncia angolana. «Mas tu já pareces um branco a falar». «Não digas nada. Era a fingir para que não notasses. Eu nasci em Lisboa, pai incógnito, até andei a estudar na Fragata Dom Fernando. A minha mãe voltou com os cinco filhos e ficou em Sá da Bandeira. Onde teve mais três. Percebes»?


Está tudo esclarecido, percebidinho da costa, dá-lhe mais sal e, ainda assim, mais picante. O pernil rescende. Trescende. Coradinho por fora, sem estar queimado, de modo nenhum, e a garrafa vai-se esvaziando. Se outra houvesse. Há. Duas de Constantino que o Kitombo tinha guardadas para ocasião especial, sabe-se lá, boda ou baptizado, até mesmo velório.

Mais especial do que esta? Nada, não, impossível. «Sabes, voltei a Lisboa, estava no Sporting quando chegou o Dinis “brinca na areia” e vaticinavam-me um futuro no chuto. Ainda treinámos juntos. Numa manhã maldita, saltei do eléctrico no Lumiar e um carro apanhou-me, partiu-me a perna, ainda me operaram, mas já não havia Pattex que me consertasse. Fiquei assim, coxo para o resto da minha vida».

Fazer alheiras

Puta de vida. Jacinto adianta-lhe estórias da terra, dos nevões invernais, das castanhas. Kitombo – que, afinal, é Francisco, Kitombo é nome de guerra, o verdadeiro é Francisco João Neto – conhece. Foi uma ou duas vezes por lá, aprendeu a fazer alheiras. Um dia, deixo-me disto. «Quando Angola for livre e independente ainda vou ao Puto». «Espero-te lá, Chico, podes ter a certeza».

«É pá, ó Jacinto, tu vais-te pirar, antes dás-me uma trancada na moleirinha para disfarçar, apanhaste-me à traição… Mas antes despes o camuflado e pões outros farrapos dos meus. Mais: pintas o trombil com a cinza castanha, para pareceres preto e algum dos nossos te topar. Além do mais ainda a noite é uma criança, passas por patrício, com o barulho das luzes».

«Compadre, és um gajo porreiro. Comida feita, companhia desfeita. E bebida também. Estou mais do que zonzo, estou bêbado que nem um cacho…» «Eu também irmão. Mas tem de ser assim. Guerra é coisa péssima, mas é guerra…». Raio de fatalismo, não se pode mudar, mas melhores dias virão. «Chico, podes vir comigo até à picada grande, não vá eu perder-me de noite»?


«Posso, claro» E seguem os dois cambaleantes, arrimados um ao outro, amparando-se, uma risada pegada, a seguir vão separar-se, a picada é já ali, Jacinto terá de dar a cacetada no Chico, para fazer de conta, por causa das moscas. Silêncio – nada. Bem ao contrário.

Jacinto, por entre os vapores do álcool, lembra-se do final da cantiga do furriel. Desta vez o soldadinho (que vai num caixão de pinho) nunca mais se faz ao mar. Ele não tem nada com isso. Volta, direito, com a ajuda do Chico Neto, gajo porreiraço, não fosse ele. Param para um último abraço. O branco levanta o pau, o preto ri-se, não vai doer nada. Nisto, a rajada.

Os flechas saltam do capim da emboscada para a terra batida. Siô Inspector lerparam os dois, se acabou o cagaçal. Estão mortos mesmo, um atrás do outro, sangue os envolve, os irmana, já começa a empapá-los. Olha só patrício: esse preto é branco. Chamuscado.

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