Viva a Vida !

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segunda-feira, 20 de agosto de 2007

Grades e copos







* Antunes Ferreira


F
iapos esparsos semelhando escorridos de algodão sujo avançam sem grande vontade pelo azul álacre dum céu a precisar de retoques. Detrás das grades grossas de pau-ferro, Jacinto perscruta o horizonte, mãos enclavinhadas nos madeiros cruzados que parecem mais fortes do que se de metal fossem. Que porra de sorte a sua. Dois anos e picos de comissão, mato fora mato e, que sacanice, quando se chegava à cidade, uma puta duma emboscada e caçado à mão. Foda-se, que era pouca sorte.

Para trás ficavam recordações, muitas boas, algumas más. Lembranças e picadas, capim e saudades, terra vermelha e peles morenas e acetinadas, sangue e Macieira, burros de mato e leite em pó, funje e minas, batatas e camoquina, ligaduras e dolca, unimogs e bacalhau. E grão. E azeite. E vinho canforado. E vinagre. E jindungo, pica mas dá gosto. Ah, e quiabos. Que no Puto não há.

No chão de terra batida da cela está um prato de alumínio amolgado onde lhe puseram uma mistela de peixe seco com ervas boiando em óleo de palma espalhada por cima de arroz empapado. Frio. Também, com uma caloraça daquelas, que mal fazia se aquela bodega estivesse gelada, saída do congelador de uma geladeira imaginária? Esquadrilhas de mosquedo aterram na massa informe. Tem fome o Jacinto da Cruz Felperra, mas de outro manjar que não daquilo.

Está completamente desperto. Quando o tinham apanhado, ia ele a alapar-se na berma enlameada, zuniam tiros por toda a parte, levara uma porrada no toutiço e perdera os sentidos. Quando voltou a si, imerso numa escuridão bolorenta, doía-lhe a cabeça, mas não estava ferido. Apalpara-se para ver se tinha alguma coisa partida, um braço, uma costela, sabe-se o quê; apenas um galo no alto da cachimónia.

Por estas bandas o tempo é incerto, mais seguro no cacimbo, mais instável no calor com chuvas. E que chuvas. Portanto, não lhe admiraria que os farrapos que deslizam no astro, quais trenós em neve compactada, daqui a nada se transformem em borrasca de criar bicho. Mas, que raio de lembrança a dos trenós. Só faltavam as renas e o barbudo, e ainda nem sequer se estava no Outono.

Que aqui, Outono, Inverno, Primavera ou Verão pouco ou nada tinham a ver com iguais termos em Portugal. Cuidado, na Metrópole, já que ali, em Angola, também é. Uma Pátria una e indivisível, do Minho a Timor, nem mais. Nem menos, óbvio, isso queriam os comunas, roubar-nos as Províncias Ultramarinas, territórios sagrados que os antepassados ilustres nos tinham deixado – para que os guardássemos e acarinhássemos.

Vai-se fazendo noite, o pôr-do-sol alaranjado foi um ar que lhe deu. Tem a boca seca, e a sede ganha esporas. Fome, nada, basta olhar o prato para que, mesmo que a tivesse, ela se fosse e depressa. Não há garrafa de água, nem cântaro, nem bidon, nem caneca, nem sequer folha de palmeira que a agarrasse. Encosta-se ao quadriculado da janela e pede água em voz alta. Quase que berra.



Um preto claudica na sua direcção, saído de cubata mal amanhada. «Qué que você queres, seu portuga?» «Um pouco de água…» «Faz favor, também por cá usa, portuga.» Mancando, o homem volta para a cubata, onde entra, um tanto agachado porque a porta é pequena. Regressa com uma cabaça, entrega-lha por entre as grades. «Não gasta toda, tem de durar até amanhã», avisa-o, displicente.

Agora já é amigo?...

«Olha lá, amigo, e onde faço as necessidades?» O coxo olha-o enquadrado nas barras cruzadas. «Agora já é amigo?... Antes, turra…» Jacinto não sabe que fazer nem que dizer. Tem razão o gajo. (A gente a pensar que estes macacos eram todos burros. Olha-me só pra este. Amigo? Nem sequer conhecido, pensa ele e acertadamente). «Vai-lhe meter um balde e você fazes aí mesmo. Mas não chateia, senão mija e caga no chão…»

Está visto que assim não vai longe. Aliás a prisa nunca o deixaria ir onde quer que fosse, mais a mais com guarda ainda que manco. O homem não tem pinta de carcereiro. Mas, à bandoleira, traz uma kala, e dois carregadores redondos pendurados do cinto. O vestuário puído, está, porem, limpo, dentro do possível e do local, que não prima pelo brilho.

Outra ideia. Rosa pulcra. Na missa dos domingos, em pleno Inverno, o prior bufando do calor da braseira, faz um frio de rachar, afirmava-o com mais obrigação do que convicção. Jacinto bem gostava, agora, de voltar a experimentar nem que fosse uma vez apenas, aquela lida de sacristão que vivera durante um mês, no lugar do Pedro Carrapato que fora ajudar a mãe na azeitona.

Mas agora não se trata disso. Se as recordações são como os baloiços, vêm e vaiem, é melhor afogá-las para que não tenham um só sentido, pior que for apenas de vinda, sem volta. Porque ele quer voltar, ele vai voltar. Há um furriel miliciano, o Marques, que tem a mania de cantar sozinho, sem assistência, no banho de regador, mas em voz baixa, baixíssima, uma coisa que fala num soldadinho que vai numa caixa de pinho ou algo assim.

Porra! Ele vai voltar mas pelo seu pé, abrenúncio, cangalheiros e gatos-pingados não são para aqui chamados, caralho. Do bolso das calças rasgadas do camuflado sai como em passe de mágica de circo, um maço de AC, ainda que amarrotado. Está cheio, ou quase, pois antes do acontecido, ainda tirara umas fumaças, antes da cacetada. Há uns dois ou três cigarros partidos, é por um deles que começa.

Vai uma passa?

Não olha para ele, mas sabe que o seu guarda está de lâmpadas esbugalhadas olhando a pirisca. Como quem não quer a coisa, estende o braço entre os madeiros e na mão a outra metade do fumante. «Vai uma passa»? O coxo agita-se frenético, como aquele tipo de Manteigas que apanhara um raio que não o partiu, mas quase.

Claro que vai. «Tem lume»? O homem apanha um tição da fogueira já a cair para as cinzas e acende-lhe o meio cigarro, sé depois o dele. «Obrigado». E parece-lhe que se derreteu aquele bloco de gelo que o guerrilheiro era. «Olhe, portuga, não sabes quanto tempo eu leva sem fumar. Muito obrigado» reforça. Engole tanto fumo que se engasga e tosse escandalosamente.

«Pareço um miúdo que ainda não aprende como se fuma»… «Deixe lá isso, companheiro, a gente sabe o que são necessidades. Há quem diga que é um vício. A ser assim, é um pequeno, porque também há vícios grandes». E Jacinto ri-se da graçola que aprendeu já não sabe onde. «Patrício, eu chamo Kitombo João, andei na escola industrial na Huila, mas não lhe acabei».

«Pois eu sou o Jacinto da Cruz Falperra, natural de Moncorvo, Trás-os-Montes, se um dia lá for vai provar um buxo de se lhe tirar o chapéu, feito pela minha mãe, acompanhado dum verde tinto ainda melhor. Tiro e queda». «E o que é isso do buxo»? «É assim a modos que um chouriço mas mais gordo e sem tanta gordura. É de comer e chorar por mais»…

«Ó seu Jacinto, lhe gosta de burro do mato»? «Compadre, não me fale nisso senão começo para aqui a babar-me. Se gosto. Assado na brasa, com umas batatas metidas no borralho, com casca, é um vê se te avias. Burro do mato é melhor do que vitela. Um nada acima, só a posta mirandesa». O Kitombo ri-se, faltam-lhe três dentes, quase igual ao seu avô Faustino a quem já se foram quatro da frente. Tal como a este.


«Se tu me promete que não foge eu lhe abro a porta e vamos assar uma perna inteira. Cacei-o ontem, ainda está fresco, coberto com folhas de palmeira por causa das moscas. Tenho sal, óleo de palma e jindungo. Alho não tem. Mas não faz mal, não achas, portuga». «E eu ralado com o sacana do alho. Faz tanta falta como uma viola num enterro».

Não foge, seu Cruz

Agora sai uma gargalhada tonitruante, o João que também é Kitombo – raio de nome, mas o dele, Falperra também não é grande espingarda – quase cai no chão de tamanho gozo. «Não foge, seu Cruz» e vai abrindo a porta, levanta o travão que é um toro pesado, vê-se pelo esforço do preto. Jacinto sai, aspira o ar e dá-lhe uma mão para encostarem o tronco à parede de terra batida.

Não é uma trégua – é uma confraternização. Para eles a guerra não parou, já foi. «Se tivesse aqui o meu bornal outro galo cantaria» suspira o transmontano. «Olha tu, ó Jacinto, o bornal está ali, na palhota, no meio das tuas coisas que te tiraram quando te amachucaram o toutiço. Porquê»? «Já vais ver meu sacana». E corre a buscar algo de especial. Oxalá não se tenha partido…

Não partiu. É uma garrafa de uísque The Monkies, o alferes Daniel diz que quer dizer… E o Kitombo interrompe «quer dizer os monges, os frades, essa gente de hábito. Mas estes bebem-se…» É a galhofa. Entre risadas dedicam-se ao assado, vira daqui, torna dacolá, mais óleo, «não abuses do jindungo que pica como o caraças».

Jacinto, quase inconscientemente, repara que o seu companheiro de farra gastronómica já não fala pretoguês, antes um português correcto, sem pronúncia angolana. «Mas tu já pareces um branco a falar». «Não digas nada. Era a fingir para que não notasses. Eu nasci em Lisboa, pai incógnito, até andei a estudar na Fragata Dom Fernando. A minha mãe voltou com os cinco filhos e ficou em Sá da Bandeira. Onde teve mais três. Percebes»?


Está tudo esclarecido, percebidinho da costa, dá-lhe mais sal e, ainda assim, mais picante. O pernil rescende. Trescende. Coradinho por fora, sem estar queimado, de modo nenhum, e a garrafa vai-se esvaziando. Se outra houvesse. Há. Duas de Constantino que o Kitombo tinha guardadas para ocasião especial, sabe-se lá, boda ou baptizado, até mesmo velório.

Mais especial do que esta? Nada, não, impossível. «Sabes, voltei a Lisboa, estava no Sporting quando chegou o Dinis “brinca na areia” e vaticinavam-me um futuro no chuto. Ainda treinámos juntos. Numa manhã maldita, saltei do eléctrico no Lumiar e um carro apanhou-me, partiu-me a perna, ainda me operaram, mas já não havia Pattex que me consertasse. Fiquei assim, coxo para o resto da minha vida».

Fazer alheiras

Puta de vida. Jacinto adianta-lhe estórias da terra, dos nevões invernais, das castanhas. Kitombo – que, afinal, é Francisco, Kitombo é nome de guerra, o verdadeiro é Francisco João Neto – conhece. Foi uma ou duas vezes por lá, aprendeu a fazer alheiras. Um dia, deixo-me disto. «Quando Angola for livre e independente ainda vou ao Puto». «Espero-te lá, Chico, podes ter a certeza».

«É pá, ó Jacinto, tu vais-te pirar, antes dás-me uma trancada na moleirinha para disfarçar, apanhaste-me à traição… Mas antes despes o camuflado e pões outros farrapos dos meus. Mais: pintas o trombil com a cinza castanha, para pareceres preto e algum dos nossos te topar. Além do mais ainda a noite é uma criança, passas por patrício, com o barulho das luzes».

«Compadre, és um gajo porreiro. Comida feita, companhia desfeita. E bebida também. Estou mais do que zonzo, estou bêbado que nem um cacho…» «Eu também irmão. Mas tem de ser assim. Guerra é coisa péssima, mas é guerra…». Raio de fatalismo, não se pode mudar, mas melhores dias virão. «Chico, podes vir comigo até à picada grande, não vá eu perder-me de noite»?


«Posso, claro» E seguem os dois cambaleantes, arrimados um ao outro, amparando-se, uma risada pegada, a seguir vão separar-se, a picada é já ali, Jacinto terá de dar a cacetada no Chico, para fazer de conta, por causa das moscas. Silêncio – nada. Bem ao contrário.

Jacinto, por entre os vapores do álcool, lembra-se do final da cantiga do furriel. Desta vez o soldadinho (que vai num caixão de pinho) nunca mais se faz ao mar. Ele não tem nada com isso. Volta, direito, com a ajuda do Chico Neto, gajo porreiraço, não fosse ele. Param para um último abraço. O branco levanta o pau, o preto ri-se, não vai doer nada. Nisto, a rajada.

Os flechas saltam do capim da emboscada para a terra batida. Siô Inspector lerparam os dois, se acabou o cagaçal. Estão mortos mesmo, um atrás do outro, sangue os envolve, os irmana, já começa a empapá-los. Olha só patrício: esse preto é branco. Chamuscado.

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1 comentário:

De Amor e de Terra disse...

Faz doer lembrar estas coisas, mesmo sem nunca ter estado na guerra..
E causam admiração estórias como esta, de amizade e/ou solidariedade/cumplicidade em tempos como esse.
Gostei mesmo muito!
Lê-se dum fôlego!

Maria Mamede