Num repelão
Gesto teatral inautêntico
disse que não almoçava e saí
esperando que me retivessem!
Assim
encontro-me no vozear barulhento do
Arcada
onde a porta gira continuamente
"Adeus oh escriturário!"
As primeiras e únicas palavras que
alguém me dirige
Alem do "obrigado" do criado,
perdão,
do empregado,
quando lhe paguei o garoto claro
e lhe dei cinco tostões.
Mas as palavras do Morte passaram
como a chuva escorrendo pela minha
gabardine branco sujo!
Como o Campos
que diz poesia muito bem
e que esteve em Luanda.
A cadeira defronte a mim continua
vazia:
apenas ocupada com o "Chamberlain"
e a gabardine
... ... ... ... ... ...
Dizem que estou apaixonado
Mas isso não e verdade.
Ou é !?
Estar apaixonado é isto!?
Esta eterna espera pelo incerto?!
Espero -te !
És a voz quente e cordial da Emília
que de repente arrefece e desaparece.
És a Maureen, borboleta esvoaçante e
carinhosa.
És a miudinha sorridente da papelaria
do Chiado,
essa mesma, que tinha uma covinha no
queixo.
Sois todas vós, oh mãos estendidas,
oh lábios sorridentes, oh verdes olhos
pretos
ou pretos olhos verdes!
Todas vós.
Ninguém!
Dizem que os livros são os nossos
melhores e maiores amigos.
Mas os livros não se sentam á nossa
beira,
nem tem olhos, nem sorriem
nem nos abraçam,
nem connosco passeiam pela rua, pelo
campo.
Nada podemos dar aos livros
senão as letras dos nossos pensamentos
ou um pouco de nós
para que chegue aos outros.
Os livros têm os olhos que nós temos.
E os seus lábios são os nossos
lábios.
Porque se os livros tivessem olhos
e lábios e mãos e dedos
seriam talvez pessoas
mas nunca livros.
Lembras-te do Cunha?
Em Luanda
era um alfarrabista de corpo dolorido e
disforme,
a quem os miúdos roubavam e
provocavam.
Cria em mim
esperava ainda ver o meu canudo
de senhor doutor.
Dizia ser eu um jovem diferente dos
outros
e nunca o consegui convencer do seu
erro:
Falávamos de ópera - e ele trauteava
as árias.
Falávamos do Camilo e do Zola
e da enorme fortuna que ele teria se os
livros em stock fossem libras.
O homem que não conseguiu ser ele
mesmo,
condenado a vender a abominável
literatura de cordel.
"Escreva-me. Não se esqueça
deste pobre velho!"
"Havemos de ver-nos nas Férias
Grandes."
O meu postal ficou sem resposta.
O Cunha morreu.
Só.
Abandonado.
Como um cão!
(Eu, que era seu amigo, nunca o
convidara para a minha mesa)
E nas tardes quentes e plúmbeas
Mais uma voz silenciou-se.
Os frigoríficos do Pólo Norte
-Frimatic, o Rei dos Frigoríficos -
substituem os livros que nunca foram
libras!
16 Março 1969
Évora
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