CONTO
O
Natal da minha infância cheirava a fumo e a frio.
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Na
aldeia, nas faldas do Marão, o dia 24 de Dezembro amanhecia com uma
auréola especial. Logo cedinho, havia uma azáfama diferente, as
pessoas andavam como se os seus passos pairassem sobre nuvens, e uma
calma doce parecia envolver tudo.
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Raramente
havia sol e o cinzento frio da serra descia e inundava tudo com uma
luz fantasmagórica. O fumo subia das chaminés, das casas que as
tinham, ou então evolava-se da ardósia que cobria as casas de
xisto. Não parava de fumegar até à altura do apagar de todas as
lareiras. No universo feminino das cozinhas das casas, as iguarias
eram preparadas pelas mães e avós sob a observação atenta das
meninas que, mais tarde, iriam perpetuar, nas suas próprias
famílias, os antigos segredos culinários. A abóbora cozida
escorria em pequenos sacos pendurados à entrada da porta das
cozinhas, para mais tarde ser frita no azeite, transformando-se nos
pequenos bolos de “calondro”. As rabanadas eram feitas com fatias
de um pão de massa fina, os cacetes, encomendados na Vila para
aquela ocasião, passadas por ovo e por leite, fritas e envoltas por
fim, em calda de açúcar. A aletria também não faltava, cozida e
disposta em pratinhos, depois enfeitados com desenhos de canela. Na
noite de consoada o bacalhau era o rei. E não eram muitas as postas
que se coziam na altura, umas lascas para as crianças, meia posta
para os adultos e isto nas casas mais abastadas. Nas outras, era
apenas um “cheirinho” para dar o gosto às batatas e à couve
troncha. Essas eram com fartura, cultivadas no campo e escolhidas
entre as melhores, assim como as batatas da terra fria, saborosas
mesmo que só comidas com azeite. A ceia era servida cedo e o serão
passado a conversar e a jogar o “par ou ímpar” ou o “rapa,
tira e põe” que era jogado com um pequeno pião que tinha escritas
as três palavras que ditavam a sorte de quem o lançava. A minha avó
materna sentava-se no escano e ia espevitando o lume e, de vez em
quando, entrava na brincadeira. Acho que era a altura em que a
sentíamos mais perto de nós e o seu semblante, sempre um pouco
severo, mais se adoçava.
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Íamos
para a cama cedo e, antes de nos deitarmos, os sapatos eram deixados
todos enfileirados na base da chaminé. Nessa noite nem dormíamos
descansados e só no dia seguinte saberíamos o que o Pai Natal lá
tinha deixado.
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De
entre os símbolos do Natal o presépio era o mais importante. A sua
feitura estava a cargo dos irmãos mais velhos que colhiam o musgo
nos soutos e nos pinhais para atapetar o chão onde eram plantados os
montes e os vales, os rios e os lagos de um universo em miniatura: a
cabana do menino, coberta de colmo, ao centro, os pastores e seus
rebanhos, as mulheres com galinhas à cabeça ou cestos de ovos, os
velhos com as suas bengalas e claro: os três reis do Oriente guiados
pela estrela. A narrativa era contada aos mais novos à medida que o
presépio ia tomando forma, qual “História Antiga” de Torga.
Falava do nascimento do menino, o deus humanizado, gerado e crescido
no ventre de sua mãe e dado a conhecer ao mundo numa manjedoura,
acolhido pelos animais que o aqueciam, adorado pelos pastores.
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Nesse tempo de inocência, as figuras do presépio tinham, além do
seu lado terreno, uma dimensão divina. Depois, na entrada da
adolescência, surgiram as dúvidas, mas a história continuou a
fascinar-me principalmente pela sua humanidade. É por isso que
sempre a contei aos meus filhos e ainda hoje a conto aos meus netos.
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A
maior parte das crianças da aldeia não sabia o que era ter prendas
no Natal. Os tempos eram difíceis e arranjar dinheiro para fazer uma
ceia mais aprimorada já era muito bom. Os mimos recebidos
resumiam-se a uns confeitos ou rebuçados que eram dados aos
montinhos, embrulhados em papel.
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Na
minha casa sempre tivemos presentes, guardados pela mãe, no guarda
fato do quarto dela e que nós, já mais crescidos, depressa
descobrimos o segredo, mas que fingíamos grande surpresa de manhã
quando aos saltos pulávamos para a cama dos meus pais a mostrar as
prendas. Raramente havia brinquedos, normalmente os presentes
constavam de peças de fazenda para fazer uma saia, meias, flanela
para os pijamas etc. Mas houve algumas excepções. Uma delas foi
quando o meu pai, que tinha regressado de Macau onde estivera a
prestar serviço militar, me trouxera uma pequena boneca de porcelana
e uns barquinhos de lata que andavam movidos a um pavio mergulhado em
azeite. Estes brinquedos fizeram a delícia dos meninos da aldeia que
para eles olhavam com o olhar maravilhado que só as crianças sabem
ter. Outro presente, que guardo na memória, foi recebido num Natal
ainda passado na casa dos meus avós paternos. Os meus pais tinham
referido as dificuldades sentidas nesse ano: talvez o Pai Natal não
trouxesse presentes. Já deitada, e nada certa em relação às
prendas, ouvi o barulho da máquina de costura o que me causou uma
certa estranheza. Quando, no outro dia, me dirigi à chaminé a
espreitar o sapatinho, tinha lá a minha boneca com um bonito vestido
que a minha mãe e a minha tia tinham feito na noite anterior.
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Hoje,
os natais não têm, para mim, a magia desse tempo, mas procuro
guardar um pouco da luz e interioridade de antigamente para passar às
gerações vindouras, pois se é certo que não se pode parar o
progresso, também é certo que o que somos em adultos é
consequência da teia de afectos que nos forma, alimenta e resguarda,
quando somos meninos.
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