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segunda-feira, 24 de outubro de 2011

Jorgete Teixeira ~ O Natal de antigamente



CONTO




O Natal da minha infância cheirava a fumo e a frio.
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Na aldeia, nas faldas do Marão, o dia 24 de Dezembro amanhecia com uma auréola especial. Logo cedinho, havia uma azáfama diferente, as pessoas andavam como se os seus passos pairassem sobre nuvens, e uma calma doce parecia envolver tudo.
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Raramente havia sol e o cinzento frio da serra descia e inundava tudo com uma luz fantasmagórica. O fumo subia das chaminés, das casas que as tinham, ou então evolava-se da ardósia que cobria as casas de xisto. Não parava de fumegar até à altura do apagar de todas as lareiras. No universo feminino das cozinhas das casas, as iguarias eram preparadas pelas mães e avós sob a observação atenta das meninas que, mais tarde, iriam perpetuar, nas suas próprias famílias, os antigos segredos culinários. A abóbora cozida escorria em pequenos sacos pendurados à entrada da porta das cozinhas, para mais tarde ser frita no azeite, transformando-se nos pequenos bolos de “calondro”. As rabanadas eram feitas com fatias de um pão de massa fina, os cacetes, encomendados na Vila para aquela ocasião, passadas por ovo e por leite, fritas e envoltas por fim, em calda de açúcar. A aletria também não faltava, cozida e disposta em pratinhos, depois enfeitados com desenhos de canela. Na noite de consoada o bacalhau era o rei. E não eram muitas as postas que se coziam na altura, umas lascas para as crianças, meia posta para os adultos e isto nas casas mais abastadas. Nas outras, era apenas um “cheirinho” para dar o gosto às batatas e à couve troncha. Essas eram com fartura, cultivadas no campo e escolhidas entre as melhores, assim como as batatas da terra fria, saborosas mesmo que só comidas com azeite. A ceia era servida cedo e o serão passado a conversar e a jogar o “par ou ímpar” ou o “rapa, tira e põe” que era jogado com um pequeno pião que tinha escritas as três palavras que ditavam a sorte de quem o lançava. A minha avó materna sentava-se no escano e ia espevitando o lume e, de vez em quando, entrava na brincadeira. Acho que era a altura em que a sentíamos mais perto de nós e o seu semblante, sempre um pouco severo, mais se adoçava.
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Íamos para a cama cedo e, antes de nos deitarmos, os sapatos eram deixados todos enfileirados na base da chaminé. Nessa noite nem dormíamos descansados e só no dia seguinte saberíamos o que o Pai Natal lá tinha deixado.
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De entre os símbolos do Natal o presépio era o mais importante. A sua feitura estava a cargo dos irmãos mais velhos que colhiam o musgo nos soutos e nos pinhais para atapetar o chão onde eram plantados os montes e os vales, os rios e os lagos de um universo em miniatura: a cabana do menino, coberta de colmo, ao centro, os pastores e seus rebanhos, as mulheres com galinhas à cabeça ou cestos de ovos, os velhos com as suas bengalas e claro: os três reis do Oriente guiados pela estrela. A narrativa era contada aos mais novos à medida que o presépio ia tomando forma, qual “História Antiga” de Torga. Falava do nascimento do menino, o deus humanizado, gerado e crescido no ventre de sua mãe e dado a conhecer ao mundo numa manjedoura, acolhido pelos animais que o aqueciam, adorado pelos pastores.
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Nesse tempo de inocência, as figuras do presépio tinham, além do seu lado terreno, uma dimensão divina. Depois, na entrada da adolescência, surgiram as dúvidas, mas a história continuou a fascinar-me principalmente pela sua humanidade. É por isso que sempre a contei aos meus filhos e ainda hoje a conto aos meus netos.
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A maior parte das crianças da aldeia não sabia o que era ter prendas no Natal. Os tempos eram difíceis e arranjar dinheiro para fazer uma ceia mais aprimorada já era muito bom. Os mimos recebidos resumiam-se a uns confeitos ou rebuçados que eram dados aos montinhos, embrulhados em papel.
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Na minha casa sempre tivemos presentes, guardados pela mãe, no guarda fato do quarto dela e que nós, já mais crescidos, depressa descobrimos o segredo, mas que fingíamos grande surpresa de manhã quando aos saltos pulávamos para a cama dos meus pais a mostrar as prendas. Raramente havia brinquedos, normalmente os presentes constavam de peças de fazenda para fazer uma saia, meias, flanela para os pijamas etc. Mas houve algumas excepções. Uma delas foi quando o meu pai, que tinha regressado de Macau onde estivera a prestar serviço militar, me trouxera uma pequena boneca de porcelana e uns barquinhos de lata que andavam movidos a um pavio mergulhado em azeite. Estes brinquedos fizeram a delícia dos meninos da aldeia que para eles olhavam com o olhar maravilhado que só as crianças sabem ter. Outro presente, que guardo na memória, foi recebido num Natal ainda passado na casa dos meus avós paternos. Os meus pais tinham referido as dificuldades sentidas nesse ano: talvez o Pai Natal não trouxesse presentes. Já deitada, e nada certa em relação às prendas, ouvi o barulho da máquina de costura o que me causou uma certa estranheza. Quando, no outro dia, me dirigi à chaminé a espreitar o sapatinho, tinha lá a minha boneca com um bonito vestido que a minha mãe e a minha tia tinham feito na noite anterior.
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Hoje, os natais não têm, para mim, a magia desse tempo, mas procuro guardar um pouco da luz e interioridade de antigamente para passar às gerações vindouras, pois se é certo que não se pode parar o progresso, também é certo que o que somos em adultos é consequência da teia de afectos que nos forma, alimenta e resguarda, quando somos meninos.

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