TERÇA-FEIRA, 25 DE OUTUBRO DE 2011
Chuva de Outubro
Antunes Ferreira
Traz os óculos de sol Ray Ban - com armações enormes às bolinhas pretas em fundo branco - no alto da cabeça, aliás despenteada com muito gosto, coisa para aí de mais de cem euros só nas madeixas e na laca. O decote generoso que exibe com ostentação revela-lhe o rego dos seios orgulhosamente protuberantes, sem sutiã, a camisola justa marca-lhe os bicos pontiagudos. Não contara com a mudança brusca do tempo.
Chove, chove muito, em bátegas sucessivas, as cordas aquosas multiplicam-se sem fim; para um Outubro que se apresentara radiante de luz, sol desempoado, calor amplo, melhor, muito melhor do que o Agosto enfezado que deitara abaixo tantos sonhos de férias ainda com subsídio. O astro carregado já passou de ameaçador a ameaça real, contundente, violenta. Correm gabardines recheadas de gente.
Caro, mas bom |
Recolhida num portal, ela tira as cangalhas oculares, guarda-as na caixa para o efeito e mete-a na malinha de mão Gucci. Um táxi é que lhe fazia um jeitão, ela naqueles preparos para Outono soalheiro e decotada à chuva, e o tal veículo preto e verde ou amarelo espapaçado nem pó. Havia-os, muitos, mas livre nenhum. E tem onde ir antes de rumar ao Quinta dos Frades para almoçar. Com o Chakall na cozinha é uma maravilha. Caro, mas bom.
Mais precisamente o seu destino inicial é a Lapa; mais exactamente ao princípio da Rua de São Domingos onde entronca com a de Buenos Aires. É ali que se encontra o seu Shangri-La, um verdadeiro paraíso, no dizer de quem sabe. O seu advogado, um pedaço de homem, diga-se, tinha-a esclarecido que fora o escritor James Hilton que começara a coisa com o Lost Horizon. Logo pensara que devia ser parente da Paris com um tal apelido.
Mas a meteorologia é inconstante, basta ser feminina e está tudo dito, no entender do companheiro, que ela adora. Não gosta do dichote, mas é ele que a orienta, que lhe indica clientes, dos que têm andar nas Amoreiras até vivenda na Verdizela, passando por BMW, Mercedes, Audis e coisas dessas. É ele também a quem entrega os euros quotidianos, a gente sabe o que são necessidades e, mais ainda, nos tempos de crise que vão correndo.
Finalmente, por entre a teia de pingos grossíssimos, um carro de aluguer; era assim que a avó dizia, vinha um Palhinhas e estava resolvida a questão. Adiante. A montra, a verde, reza COMPRAMOS OURO e, logo de seguida, OS MELHORES PREÇOS DO MERCADO, e ainda SIGILO ABSOLUTO.
Tudo em esmeraldas |
Entra, e o dono, solícito por trás do balcão, então hoje, querida Senhora, que temos? Entrega-lhe a gargantilha, o par de brincos e a pulseira, excelente conjunto, diz o patrão, desviado? Pensou, obviamente, em roubado, mas isso não se pergunta. Nada, ela não é dessas coisas, foi prenda de um cavalheiro que gosta muito dela, quem sabe se algum dia meterá casamento com vestido branco de cauda e ramos de orquídeas, a flor de laranjeira já deu o que tinha a dar.
Acertam o preço, pede muito, minha querida Amiga, não posso chegar a tanto, vá lá, mais isto e mais aquilo, empurra um daqui, carrega ela dacolá, discussão suave, decibéis moderados, sem diapasão, não é necessário, a afinação chega, guarda as notas na carteira, abrandou um tanto a carga de água, mas quer que lhe chame um táxi, daqui da praça, é um instantinho.
Segue para o restaurante. Ontem, fora um mau dia, e o seu homem, dono e orientador técnico que já lá deve estar à espera da massa, chateia-se muito com receita curta, chega a dar-lhe uns tabefes e por aí fora. Por isso este recurso. Um tanto bruto, o querido; mas, chulo é que ele não é. Puta de vida, mas o coração tem paixões que…
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