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sexta-feira, 19 de abril de 2013

Jorgete Teixeira - Amélia

 

19 de Abril de 2013 às 17:05


Amélia de olhos cansados



Não se chamava Amélia e os seus olhos há muito que não passavam de lagos estagnados onde estilhaços de bombas navegavam… mas era mulher, embora o seu corpo fosse uma massa indistinta de músculos, sangue, ossos e pele sem a seda dos primeiros anos…desde que ali estava uma melodia de um tempo já longe martelava-lhe os ouvidos “Amélia dos olhos doces, quem dera que fosses apenas mulher…”não sabe quem escreveu aqueles versos nem porque passeiam pelo quarto ondulando como fitas ao vento… tudo é branco à volta, não o branco da neve, não o branco da flor de laranjeira, mas branco, onde a cor foi roubada, os lençóis, as paredes, a luz do teto que sai de uma lâmpada florescente por cima da sua cabeça, até o quadro da Vénus desnuda, onde as cores desbotadas fazem parecer estranha a referência ao amor. cheiram a peixe os olhos do homem, a peixe e a morte,embora não saiba a que cheirará a morte, sempre lhe tinha sido vedado esse contacto, não percebe qual a razão, afinal é uma coisa tão natural como a vida e tão próxima dela… na mesa-de-cabeceira um candeeiro que não acende e uma tesoura que alguém esquecera, presença inusitada, pensa ela…  o homem  mexe-se convulsivamente…à ideia vêm-lhe as sandálias que tinha visto na montra de uma sapataria na baixa, havia uns sapatos na canção, tinha a certeza, tudo gira na sua cabeça, gira e gira como uma paleta de cores até ficar uma cor única e indefinida, o queijo a comprar no supermercado que não pode ser muito caro, a persiana por arranjar, o tempo que está péssimo, a roupa que não enxuga no varal, quase rota de tanto lhe dar o vento, e as palavras da mãe: não te deixes vencer, minha filha, não te deixes vencer …
Os olhos do homem eram olhos de peixe e ele estrebuchava…a pele era baça, como papel amarfanhado e ele estrebuchava, ela sentia o corpo entorpecido pelos safanões, nem frio, nem quente, de uma mornura áspera, onde o homem chafurdava…a lâmpada continuava acesa, incomodava-a essa luz crua que punha a nu a pele avermelhada no pescoço grosso, sente um enjoo mas não se mexe, o homem continua em espasmos sincopados, mas ela não estava já ali…circundava pelos vales frescos da aldeia, onde havia um ribeiro e as mulheres se iam banhar às escondidas,vestidas com as combinações de algodão…não tinham fato de banho, mas a água tornava-as ainda mais libidinosas e apetecíveis, com os seios intumescidos e molhados e a mancha escura da púbis a vislumbrar-se através do tecido, a despertar apetites nos homens que se escondiam por entre os canaviais que circundavam o ribeiro…
Não te mostres vencida,repetia-lhe a voz da mãe…e os olhos de peixe do homem e a sua boca e os seus dedos que lhe percorriam a pele e em cada centímetro deixavam uma baba que alastrava e entrava no ventre e no coração …
Tentava concentrar-se, agarrar-se a um ponto no corpo dele a ver se lhe despertava algum vislumbre de prazer, para que os olhos de peixe deixassem de parecer mortos, ou seria ela que já tinha deixado de existir…percorre o olhar pelas paredes, no branco, branco, há uma racha que  parece uma cabeça decepada, ou talvez vista de outro lado uma ovelha e isso fá-la pensar de novo na aldeia da sua meninice, quando a obrigavam a dormir a sesta e o sono não vinha, lembrava-se de uma nesga de luz filtrada pela janela e essa luz, por um estranho fenómeno óptico,  projectava as pessoas que passavam lá fora, eram figuras invertidas, quando era pequena pensava que era magia, esses vultos pequeninos,de pernas para o ar, depois alguém lhe explicou o fenómeno… o homem parecia possuído por uma espécie de apoplexia nervosa que o fazia soltar sons ininteligíveis, enquanto revirava os olhos, fechou os seus para não ver até que ele caiu para o outro lado com um último estertor de bicho saciado. Pensou que era o fim e respirou aliviada, adormeceu e quando de repente acordou o homem estava de novo em cima dela, eram mais intensos os cheiros guardados sob o édredon e a cabeça inchou até não poder mais, latejava enquanto ele lhe remexia as entranhas. Não deixes que ele te subjugue mais, era a voz da mãe cantando na voz da Amélia que apenas queria ser mulher, ela não sabia porque raio haveria alguém de querer ser apenas mulher, se isso lhe roubava a alma, se o corpo era aquele ser onde outros se esfregavam, sem ser pertença dela, Amélia dos olhos doces, o ritmo das arremetidas do homem ia aumentando não a deixava concentrar-se, queria saber o resto dos versos da canção, havia uns sapatos, disso se lembrava, os olhos de peixe embranqueciam de novo e ela enojada virou a cara para o lado, magoou-a um movimento mais forte, não disse nada, ou talvez tivesse dito, não sabia, os músculos tornaram-se marionetas e os ossos e a carne, dela era só o que estava dentro da cabeça, a melodia e os versos que choquelejavam de um lado para outro... em cima da mesa de cabeceira a tesoura era enorme, os sapatos da Amélia tinham tiras, esforçou-se para se lembrar do resto, mas os movimentos do homem cresciam de intensidade, ela era agora a mão e a tesoura numa só matéria, a música, o branco da parede, as ovelhas, a Vénus despida, os olhos de Amélia, desmesuradamente grandes, a voz da mãe… tudo a crescer até abrir as paredes e deixar entrar os campos e a água do rio inundando o quarto e o azul do céu derrotando o branco… o homem parou de repente com um sacão, abriu os braços a sorver o ar, os olhos de peixe tornaram-se vidros foscos enquanto uma mancha vermelha e quente alastrou no branco dos lençóis. Finalmente lembrou-se dos versos da canção:
“ Cabelos cor-de-viúva,/ cabelos de chuva, sapatos de tiras/ e pois, quantas vezes/ não queres e não amas,/ os homens que dormem,/ os homens que dormem contigo na cama”.
 O que era o amor?


Maria jorgete teixeira





Picasso 
les demoiselles d'avignon
Picasso les demoiselles d'avignon
  • Joaquim Pessoa Belo texto, muito intenso, muito ritmado, ofegante algumas vezes, outras tristemente vagueando sem tempo pelo interior de Amélia, isto é, pelo interior de cada um de nós. A minha Amélia, a tua Amélia, são uma só, e no entanto são centenas de milhares de mulheres. Dessas de quem eu já disse há mais de 30 anos:

    Reparem quando ela passa.
    Beija os filhos no olhar!
    Essa palavra ternura
    quem é que a soube inventar?

    Lá vai ela. Como tem
    os lábios cor de romã!
    Ela vai. Mas quem bebeu
    nos seus seios a manhã?

    Tem ancas de sofrimento.
    É simples como a pobreza.
    Nos cabelos dorme o vento
    com a palavra tristeza.

    Lá vai ela. Minha dor.
    Égua de prata a correr!
    Vai a fingir que o amor
    também se pode vender.

    Lá vai. Lá vai. E que importa
    a dor que me nasce a rodos?
    Ela vai de porta em porta
    vender um pouco de todos.

    (...)

    De BALADA PARA UMA MULHER 
    (Amor Combate).

    Parabéns, Jorgete! Faz-me bem saber que existes.
    Beijo grato.
  • Margarida Piloto Garcia Para além de ler por várias vezes o teu texto, porque ele marece e nos apela, li também cuidadosamente certos comentários pelo respeito e admiração que me merecem quem os escreveu. Depois de tudo isso, as minhas palavras não passam de meras repetições. Já te tenho dito que sou uma grande admiradora da tua escrita,. Não é uma simples declaração "despachada" à laia de amizade. É sim um reconhecimento da tua técnica, mas mais ainda do teu sentir. Esta história entrelaçada com o magnífico poema de Joaquim Pessoa, eternizado numa bela canção, leva-nos numa viagem alucinante, arrepiante e onde a respiiração se sustém até um final quase esperado. A certa altura, estamos no lugar daquela mulher, provando todos os horrores que tantas vidas suportam. Só uma mulher de grande sensibilidade levando na bagagem as marcas da vida, pode transmitir desta forma todos estes sentimentos. E depois a tua escrita tem um vocabulário imagético excepcional e absolutamente cinematográfico. 

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