Amélia de olhos cansados
Não se chamava Amélia e os seus olhos há muito que não passavam de lagos estagnados onde estilhaços de bombas navegavam… mas era mulher, embora o seu corpo fosse uma massa indistinta de músculos, sangue, ossos e pele sem a seda dos primeiros anos…desde que ali estava uma melodia de um tempo já longe martelava-lhe os ouvidos “Amélia dos olhos doces, quem dera que fosses apenas mulher…”não sabe quem escreveu aqueles versos nem porque passeiam pelo quarto ondulando como fitas ao vento… tudo é branco à volta, não o branco da neve, não o branco da flor de laranjeira, mas branco, onde a cor foi roubada, os lençóis, as paredes, a luz do teto que sai de uma lâmpada florescente por cima da sua cabeça, até o quadro da Vénus desnuda, onde as cores desbotadas fazem parecer estranha a referência ao amor. cheiram a peixe os olhos do homem, a peixe e a morte,embora não saiba a que cheirará a morte, sempre lhe tinha sido vedado esse contacto, não percebe qual a razão, afinal é uma coisa tão natural como a vida e tão próxima dela… na mesa-de-cabeceira um candeeiro que não acende e uma tesoura que alguém esquecera, presença inusitada, pensa ela… o homem mexe-se convulsivamente…à ideia vêm-lhe as sandálias que tinha visto na montra de uma sapataria na baixa, havia uns sapatos na canção, tinha a certeza, tudo gira na sua cabeça, gira e gira como uma paleta de cores até ficar uma cor única e indefinida, o queijo a comprar no supermercado que não pode ser muito caro, a persiana por arranjar, o tempo que está péssimo, a roupa que não enxuga no varal, quase rota de tanto lhe dar o vento, e as palavras da mãe: não te deixes vencer, minha filha, não te deixes vencer …
Os olhos do homem eram olhos de peixe e ele estrebuchava…a pele era baça, como papel amarfanhado e ele estrebuchava, ela sentia o corpo entorpecido pelos safanões, nem frio, nem quente, de uma mornura áspera, onde o homem chafurdava…a lâmpada continuava acesa, incomodava-a essa luz crua que punha a nu a pele avermelhada no pescoço grosso, sente um enjoo mas não se mexe, o homem continua em espasmos sincopados, mas ela não estava já ali…circundava pelos vales frescos da aldeia, onde havia um ribeiro e as mulheres se iam banhar às escondidas,vestidas com as combinações de algodão…não tinham fato de banho, mas a água tornava-as ainda mais libidinosas e apetecíveis, com os seios intumescidos e molhados e a mancha escura da púbis a vislumbrar-se através do tecido, a despertar apetites nos homens que se escondiam por entre os canaviais que circundavam o ribeiro…
Não te mostres vencida,repetia-lhe a voz da mãe…e os olhos de peixe do homem e a sua boca e os seus dedos que lhe percorriam a pele e em cada centímetro deixavam uma baba que alastrava e entrava no ventre e no coração …
Tentava concentrar-se, agarrar-se a um ponto no corpo dele a ver se lhe despertava algum vislumbre de prazer, para que os olhos de peixe deixassem de parecer mortos, ou seria ela que já tinha deixado de existir…percorre o olhar pelas paredes, no branco, branco, há uma racha que parece uma cabeça decepada, ou talvez vista de outro lado uma ovelha e isso fá-la pensar de novo na aldeia da sua meninice, quando a obrigavam a dormir a sesta e o sono não vinha, lembrava-se de uma nesga de luz filtrada pela janela e essa luz, por um estranho fenómeno óptico, projectava as pessoas que passavam lá fora, eram figuras invertidas, quando era pequena pensava que era magia, esses vultos pequeninos,de pernas para o ar, depois alguém lhe explicou o fenómeno… o homem parecia possuído por uma espécie de apoplexia nervosa que o fazia soltar sons ininteligíveis, enquanto revirava os olhos, fechou os seus para não ver até que ele caiu para o outro lado com um último estertor de bicho saciado. Pensou que era o fim e respirou aliviada, adormeceu e quando de repente acordou o homem estava de novo em cima dela, eram mais intensos os cheiros guardados sob o édredon e a cabeça inchou até não poder mais, latejava enquanto ele lhe remexia as entranhas. Não deixes que ele te subjugue mais, era a voz da mãe cantando na voz da Amélia que apenas queria ser mulher, ela não sabia porque raio haveria alguém de querer ser apenas mulher, se isso lhe roubava a alma, se o corpo era aquele ser onde outros se esfregavam, sem ser pertença dela, Amélia dos olhos doces, o ritmo das arremetidas do homem ia aumentando não a deixava concentrar-se, queria saber o resto dos versos da canção, havia uns sapatos, disso se lembrava, os olhos de peixe embranqueciam de novo e ela enojada virou a cara para o lado, magoou-a um movimento mais forte, não disse nada, ou talvez tivesse dito, não sabia, os músculos tornaram-se marionetas e os ossos e a carne, dela era só o que estava dentro da cabeça, a melodia e os versos que choquelejavam de um lado para outro... em cima da mesa de cabeceira a tesoura era enorme, os sapatos da Amélia tinham tiras, esforçou-se para se lembrar do resto, mas os movimentos do homem cresciam de intensidade, ela era agora a mão e a tesoura numa só matéria, a música, o branco da parede, as ovelhas, a Vénus despida, os olhos de Amélia, desmesuradamente grandes, a voz da mãe… tudo a crescer até abrir as paredes e deixar entrar os campos e a água do rio inundando o quarto e o azul do céu derrotando o branco… o homem parou de repente com um sacão, abriu os braços a sorver o ar, os olhos de peixe tornaram-se vidros foscos enquanto uma mancha vermelha e quente alastrou no branco dos lençóis. Finalmente lembrou-se dos versos da canção:
“ Cabelos cor-de-viúva,/ cabelos de chuva, sapatos de tiras/ e pois, quantas vezes/ não queres e não amas,/ os homens que dormem,/ os homens que dormem contigo na cama”.
O que era o amor?
Maria jorgete teixeira
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