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"O Natal já foi ?", perguntou a voz sumida no fundo do antro de papelão molhado. O menino estacou surpreso, desconcertado. Apertou mais a mão do pai. "O Natal é uma merda bem cheirosa!", volveu a voz. O adulto fez tenção de acelerar o passo, temendo que o usual avolumar do vernáculo por aquelas bandas ferisse os tímpanos infantis.
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Mas o menino nem se mexeu e quando, por fim, lobrigou os desgrenhados cabelos, a barba imensa, a tez escurecida, puxou o pai com o olhar suplicante. "Está ali um avô, pai e acho que tem fome". O adulto ainda argumentou o trivial, mas a crinça manteve-se impassível. "Aquele avô tem fome, papá, dá-lhe dinheiro para a comida".
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Vencendo a custo o rio de mijo, agarrou a nota pela ponta e lançou-a para a mão suja. De seguida afastou-se com medo do contágio da pobreza, do cheiro imundo, da sarna social em que a artéria lisboeta se tornara. Entrou no Centro comercial a abarrotar de "Promoções a 70%" e o benuron das luzes, a magia da abundância, apagou-lhe qualquer resquício do que se passara.
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Só o menino se mantinha cabisbaixo, absorto, estranhamente triste, distante. Ainda tentou resgatá-lo com o suborno de um gelado mas a recusa firme do infante demoveu-o rapidamente. "Está com a mosca, mas isto passa-lhe", pensou satisfeito sem desgrudar o olhar da agência que promovia viagens fabulosas. Pudesse ver-se ao espelho e o reluzir do olhar com que antevia as paradisíacas praias, ofuscá-lo-ia.
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Esqueceu o menino e deambulou pelo espaço comercial maquinalmente, arrastando a criança pela trela da mão pequenina, alheio a tudo.
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No regresso, a mesma rua suja, o mesmo cheiro nauseabundo, o mesmo papelão encardido. Mas o adulto, domado pela indiferença não viu nada. Nem sentiu a crescente agitação da criança. "Vês, pai, já foi comer..."
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E foi então que acordou. Olhou o filho e não conseguiu recordar-se de o ver antes tão feliz.
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Lágrimas pesadas inundaram-lhe o rosto. Recuou 40 anos e viu-se pequenino, puxado pela mão áspera da mãe, as mesas dos restaurantes pejadas de gente com Natal e a voz angustiada, suplicando " Dê-me uma esmolinha, o meu filho tem fome".
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O eco tenebroso chicoteou-o até à exaustão: o "Tenha paciência!" da recusa associado, por vezes, a umas pernas de sapateira ou umas quantas gambas cozidas, mas sempre enxotados pelos ricaços até terminarem, mãe e filho num qualquer antro da cidade.
Definitivamente, o Natal ainda não foi.
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Para que não seja eu
me julgam
Me condenam
Me degolam
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Para que não sonhe
Me rasgam o pensamento
Me roubam
o lugar na cama
E me deixam
Com angústia e com lama
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Quero ser
o dono do meu tempo
(Não o destruam)
Poder ousar morder
o meu próprio corpo
Num afã incontrolável
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Apodrecer e caír morto
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Quero ser
A minha loucura
Semeada de gritos e lamentos
Beber o meu sangue
O meu vinho
Comer o meu pão roubado
Enforcar-me
numa corda de sonho
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Partir
Para não mais regressar
Sentir o silêncio da terra
Onde as rosas protestam
em cânticos de luto
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Arder
em chamas de cardos
e de cravos
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Vaguear no Inferno
Com odores de esqueletos
muribundos
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Quero
os meus passos infames
a pisar pétalas e bichos
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Como um corcel alado
em busca do ADEUS
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