Viva a Vida !

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domingo, 20 de novembro de 2011

Jorgete Teixeira ~ Condição feminina


                                        

Cecília andou todo o dia numa roda-viva. Acordou cedo para ir para o trabalho, preparou-se à pressa, vestiu umas calças de ganga e uma camisola, por cima um casaco de lã, calçou uns sapatos rasos, preparou os cereais para o filho mais novo, o mais velho pegou num pacote de leite com chocolate e abalou a correr, nem ouviu os ralhos da mãe:
- João, não comes nada de jeito, nem tens energia para fazeres o teste; veste o casaco, se faz favor, que está frio.
Pegou nas chaves do carro – Pedro, despacha-te que a mãe está atrasada!
Ia a sair, voltou para trás, faltava a pasta. Deixou o filho mais novo na escola:
- Beijinho à mãe. Porta-te bem!
O dia no escritório correu normalmente, papéis e mais papéis, pausa para o almoço no snack da esquina, dois dedos de conversa com a colega:
            - Os homens, minha filha, são todos iguais. Igualdade, igualdade, mas no fim, quem trata dos assuntos da casa e dos miúdos, somos sempre nós!
E vá de desfiar exemplos, uns atrás dos outros, e a outra dizendo que sim, comigo passa-se o mesmo, não há pachorra, ontem, vê lá, irritei-me, discuti com ele, já na cama, fiquei com uma insónia desgraçada e quando olhei para o lado dormia que nem um anjinho!
            Cecília saiu do trabalho, passou pelo ATL a buscar o filho, chegou a casa, preparou o jantar, orientou os trabalhos de casa dos pequenos. Sentiu a chave rodar na fechadura, o marido entrou na cozinha, veio por trás e deu-lhe um beijo no pescoço, sentiu um arrepio, pensou na noite que se aproximava, mas disfarçou, rindo:
            - Tá quieto, não vês que estou a trabalhar?
Agora está tudo calmo, o filho mais novo já foi para a cama, o mais velho está no quarto ainda com a luz acesa. Cecília está sozinha, sentada no sofá da sala. O marido saiu. Tinha uma reunião do partido. Cecília pensa como a vida dela poderia ter sido diferente. Tinha casado demasiado cedo, logo vieram os filhos, dois, um a seguir ao outro, e o tempo tinha decorrido sem sobressaltos de maior.
Agora sentia-se um pouco vazia e pensava que poderia ter seguido outro caminho. Presa na quietude da casa, olha para o quadradinho iluminado e deixa-se levar…
Cecília, em frente ao televisor, vive as histórias dos outros. Pelo ecrã passam as mulheres que gostava de ter sido, nelas se revê em centenas de situações: como elas se sente admirada, se vê vestida de cetim, descendo as escadarias de grandes palácios qual estrela de cinema numa fita dos anos 50. Outras vezes é mulher da rua, desbocada e ordinária, dona do seu corpo de formas opulentas, grandes seios emergindo dos decotes ousados, despertando paixões. Até nas vidas banais se revê e as cenas do dia-a-dia, no televisor, transfiguram-se e parecem-lhe interessantes, os pequenos gestos, iguais a tantos outros, tão cheios de inesperada luz.
 Em frente ao televisor alheia- se do quotidiano de cansaço, onde nada acontece. Nada que a aqueça, nada que mexa lá no fundo, nada que lhe mostre que ainda está viva.
Em frente ao ecrã vive outras vidas e outras épocas, aureoladas de mistério, tão sedutoras e longínquas, de repente feitas presente, diante dos seus olhos. Em frente ao televisor se esconde e aquele universo que vai passando na sua frente passa a ser o seu.
            O mundo ainda é maioritariamente dos homens, pensa ela, às mulheres cabe tratar dos filhos, governar a casa, orientar as crianças, além de trabalhar fora. Não há tempo para grandes voos. Por isso Cecília se questiona e se encolhe no seu universo solitário, naquele momento apenas partilhado com as imagens que desfilam, de gente distante, que se torna familiar e a acompanha dia a dia.
Sabe os seus nomes, vive as suas paixões, os seus anseios, as suas ambições, sente as suas frustrações, os seus receios.
            Vai dormitando no sofá, lembra-se do beijo no pescoço, espera mais um pouco, mas as horas passam e ela está estafada!
            Quando o marido chega ela já dorme na cama e quase nem dá pela sua chegada, apenas o calor de um corpo próximo se insinua, mas a marca do beijo já se desvaneceu e ela afasta-se levemente.
           Amanhã, amanhã será um novo dia.
            

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NOTA 
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Mando-te um texto que escrevi para o "Rostos", também espero a tua opinião. Ultimamente tenho escrito pouco, não tenho muita disponibilidade este ano.
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Ah, é verdade: li as tuas memórias do tempo de juventude e vi algumas fotos da tua família e amigos, suponho. É interessante verificar que falas nas pessoas que fizeram parte da tua vida com grande naturalidade. Há gente que se separa, arranja um novo amor e esquece o passado, como se ele , de repente deixasse de existir, desfazem-se dos laços que tiveram com essa gente com quem conviveram (e não estou a falar só nos parceiros) com quem passaram momentos bons e maus. Isso faz-me muita impressão.

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