Viva a Vida !

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domingo, 20 de novembro de 2011

Jorgete Teixeira ~ Cecília e o “Outro”



            Lembrava-se de um tempo em que o simples tocar das mãos lhe provocava um arrepio pelo corpo todo, tão intenso e fundo como se fosse o culminar do amor. Tentava recordar-se da sensação que precedia os momentos e lembrava-se que sempre a achava mais estimulante que o próprio momento. O prazer que sentia com a antecipação de saber o que ia acontecer, aquele instante mágico em que nada mexe em nós e tudo se concentra na imaginação: os gestos, o percurso das mãos, os ruídos, os cheiros.
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Agora, sentada no sofá da sala, pensava como tudo isso tinha ficado tão longe e sem importância. Já não havia a urgência do amor e aos poucos, mesmo o contacto físico, mais mecânico que emotivo, tinha deixado de existir. No entanto, perguntava a si própria se o estado em que se encontrava seria mesmo irreversível e sentia saudades do tempo em que o amor doía só de pensar nele e as palavras tinham o sabor virginal da primeira vez. Olhava o seu corpo ao espelho e tentava ver nele alguma centelha da antiga paixão. Nunca se achara propriamente bonita, mas agora considerava que, como qualquer mulher, também ela tinha tido o seu tempo de esplendor e encanto. E sentia uma tristeza funda como se uma morte antecipada se fosse anunciando, sem dar hipótese alguma de fuga. Algumas vezes tinha vontade de rasgar essa inércia em que estava mergulhada, tentar um gesto, uma audácia, dar o primeiro passo, mas retraía-se no seu casulo feito de silêncios, de conversas mudas, de estúpido orgulho.
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Não sabia nada do Outro. Olhava-o, às vezes, e sentia nele também uma secreta tristeza, mas nunca conseguira entrar nesse universo íntimo tão cheio de muralhas e armaduras que escondiam, disso ela tinha a certeza, fragilidades e incertezas. Várias vezes tinha tentado entrar nesse mundo masculino, estender uma ponte que fosse capaz de restabelecer o antigo encanto. Mas do outro lado encontrava sempre o silêncio e as suas palavras batiam contra o muro de indiferença intransponível e ricocheteavam atingindo-a no seu orgulho e acabava sempre às voltas na cama com uma, cada vez maior, sensação de impotência. Ao seu lado o Outro dormia profundamente.
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Mas nem sempre tinha sido assim. Num tempo que lhe parecia ter sido já há uma eternidade, bastava vê-lo aparecer ao fim da rua com a sua camisa branca voando ao vento e era como se o sol acabasse de nascer, como se todos os sinos da terra de repente começassem a repicar numa euforia desenfreada. Segui-lo-ia para o fim do mundo se preciso fosse, indiferente à sociedade e à família. Isso era ainda no tempo de todos os medos, quando as lutas eram clandestinas e as ciladas espreitavam a cada esquina. Mas mesmo assim quando caminhavam de mãos dadas pelas ruas era como se nas suas mãos estivesse contido todo o destino da humanidade. E caminhavam no Rossio como se não existisse mais ninguém à sua volta e as palavras de amor ditas em francês  eram como se nunca tivessem sido ditas.
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Agora, de repente,. sentia-se morta para esse universo dos sentidos e das emoções, como se já não lhe dissessem respeito e sentia-se secar prematuramente.
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Se não fosse esse medo do fracasso, poderia tentar alguma coisa: um gesto, um toque que conseguisse despertá- la de novo. Apenas uma vez e tornar a sentir o arrepio das palavras sussurradas ao ouvido, dos gestos inventados naquele momento, correndo livres ao sabor do desejo.
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Esperou a noite. E a noite veio e ela se entregou sem alegria ao amor cansado, de gestos iguais, de mãos que, por terem percorrido milhares de vezes o mesmo caminho, cavaram fossos na pele sem calor. E as lágrimas correram soltas no leito do seu corpo, silenciosas e ardentes.
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No beijo que selava o momento, antes de dormir, o Outro não sentiu o sabor salgado e virou-se para o outro lado.
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Amanhã, talvez amanhã...



Barreiro, 2006





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