O SILÊNCIO E OS SINOS
Dizem que o homem sentado nos degraus da Igreja não fala. Ao que tudo indica vive das esmolas do Chiado, mas segue o silêncio das sombras que passam ,tentando, através delas, imaginar os ruídos diurnos. Não é certo que os ouça, mas procura-os, com o olhar. Ainda há pouco a noite, no Bairro Alto, era um caleidoscópio de candeeiros antigos e luzes mornas, enquanto as vozes roucas de fadistas e curiosos transpiravam sons e roçavam esquinas, tentando contrariar o ruído dos botequins e a euforia gritante dos jovens à porta do dia.
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É verdade que, de um modo geral se evita olhar de frente um cidadão sem voz, mas é pena que assim seja, por que é através dos olhos que ele nos fala da sua solidão e nos pede que o libertemos dela, como no fado. É um apelo surdo que, no caso presente, à distância a que nos encontramos do mendigo, do outro lado da rua, apenas se pressente , na humilhação dos óbolos, que também vão escasseando. Habituados, como estamos, ao rugir diurno da calçada, pouco ou nada sabemos acerca dos silêncios do Homem e dos Templos . Mesmo que falasse, todas as outras vozes juntas abafariam a sua e é bem possível que nada dissessem capaz de lhe resolver o problema. É evidente que chamar-lhe mendigo ou sem-abrigo, em vez de o tratar pelo seu nome próprio, não facilita, sequer, o diálogo gestual, o que por outro lado nos dispensa o incómodo do contacto directo com o sujeito em questão. A desconfiança quanto à verdade da sua mudez justifica-se, até certo ponto, pois ele, ao contrário de quase todos os seus companheiros, apresenta-se, na circunstância, como nómada. O homem apareceu por ali há poucos dias e, não possuindo qualquer lugar cativo na calçada, tornou-se, desde logo, segundo os critérios do grupo, de comportamento fraudulento, penetra e intruso. Corpulento, façanhudo e ligeiramente mais jovem do que os outros, ainda por cima não apresentando características dialogantes, dificilmente algum dos seus companheiros terá tentado demovê-lo de ocupar geograficamente o espaço que mais lhe convém, mesmo que esse seja o dos outros. No que respeita aos transeuntes, tanto se lhes dá, cada um carrega a sua própria cruz e até é muito mais fácil ignorar o mal alheio quando a vítima nem o nome da sua própria desgraça consegue pronunciar, sente-se ela onde se sentar. No caso presente o suspeito situou-se, estrategicamente, à porta de um Templo, impedindo, por assim dizer, a livre circulação entre a vida e a morte. Não existindo, à vista desarmada, qualquer sinal de que possa ali estar com o único propósito de vender velas ou pensos, o que nos permitiria ainda manter acesa uma centelha de esperança, quanto à cura da doença e à possibilidade de adiamento do final da história, a sua presença surda e muda, entre dois mundos opostos, torna-se ainda mais insuportável e suspeita. Tempos houve em que se vendiam-se violetas, no Chiado, à porta das Igrejas e era nítida aquela sensação de nostalgia, queria dizer mal estar, que me assaltava, por antipatia com um filme onde, por ruas obscuras, o apregoar soturno das Flores para los muertos ecoava com a certeza de um final igual para todos, não obstante as diferentes vivências e classe social dos protagonistas. Na verdade nem eram tristes, as antigas vendedeiras de flores, no Chiado, pelo menos desde que um nobre fadista se decidira, com merecido sucesso, a eternizar o ar gaiato da Menina das tranças pretas, que ali venderia raminhos de violeta.
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Enfim, da primeira vez que me cruzei com o suspeito, optei por ignorar a criatura, por falta de condições para um diálogo minimamente compreensível ou pelo simples terror que, os gritos de um mudo da minha infância, que vivia no rés-do-chão, sempre me causara. A irmã batia-lhe, para se defender, porque ele também não era flor que se cheirasse e ele defendia-se e repostava com arranques guturais e soturnos, que ressoavam no meu andar de sonhos infantis, com um pesadelo. Depois, por vingança, ele saía para a rua e assustava as crianças, com outro tipo de gestos e gritos, porque talvez também não fosse tão mudo como diziam. Não deixaria, porém, de observar, mais de vinte anos após o descrito, aquele, ali, a curta distância.
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O homem situado entre dois mundos, o do respeitoso silêncio e o dos gritos, está agora ocupado a dissecar uma laranja, manejando um canivete alentejano, com a perícia de quem já descascou muito sobreiro, cortou goelas ou passou pela “ chacina “, na indústria dos suínos. Traz as lonjuras da planície gravadas no olhar, sempre além daqui, o rosto moreno sulcado de rugas silenciosas e a inclemência solar gravada na testa. O rosto, curiosamente, bem barbeado, denota algum cuidado na apresentação e higiene por parte do mendigo, para além de um certo respeito pelo Templo em si, muito embora um hirsuto bigode lhe carregue o parecer, concedendo-lhe o ar decadente de alguns artistas de antanho ou facínoras confirmados. Claro que o objecto cortante bem pode ter sido fabricado em Guimarães ou na Galiza, mas quanto à origem do utilizador, aí não existem dúvidas. Ninguém consegue tirar tanto partido de uma lâmina como um Alentejano, dissera - me o meu primo João Dias, que descreveria, com conhecimento de causa o Alentejo em carne viva, com versos tardios, que poucos leram ou cedo abandonaram por não conseguirem suportar algumas frases em Português vernáculo, algo impróprias para leitores demasiado sensíveis ao áspero das palavras. Ninguém o terá lido, tantas vezes como eu, por que, até provas em contrário, ele fazia parte da família e sempre que aparecia, lá em casa, no Bairro Velho, ninguém lhe pedia que explicasse por que razão lhe chamavam o Ovelha negra ou ele próprio assim se considerava. Nas badanas do livrinho, em notas autobiográficas, dizia-se filho de Alentejanos, quase indigentes, do Alvito e de Cuba. As suas vidas de modestos contratados, a título sazonal, obrigava-os a fazerem um pouco de tudo para sobreviverem e bem teriam justificado o livro maçudo que ele nunca chegou a escrever. Lá em casa, sempre que aparecia, não era só mais um dos nossos primos, que por aí andavam, espalhados pelo mundo, mas também a luz viva e selvagem que entrava por ali e nos invadia por dentro, com o seu rir gritante, insultuoso quase, no bom sentido, os dentes alvos, contrastando com o farto bigode que florestava o seu proeminente nariz, compondo a boa figura de um homenzarrão determinado, que ria, ria e nos fazia rir, com as suas anedotas da noite, as suas cascas de laranja, trabalhadas a canivete, com precisão e carinho, que se transformavam em óculos de palhaço. Depois, divertido, ele encavalitava - os no topo do meu nariz, chamando-me mocho sábio e impedindo-me, por outro lado, a concentração nos livros escolares, porque ler não bastava, o que era urgente era ensinar a aprender , a pensar, a reflectir e a viver, mas isso eles não queriam. Claro que naquele tempo eu não entendia muito bem o que ele queria dizer com aquilo, já que para ler o Cavaleiro Andante ou os livros proibidos do meu pai, de uma ponta a outra e sem hesitações, eu tinha mesmo de aprender a ler e para tal não precisava dos conselhos de ninguém.
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Depois, à despedida, deixava por lá os seus desenhos em guardanapos de papel, ou alguns versos rabiscados à pressa num bloco, não como moeda de troca, pela atenção dispensada, mas apenas, por que era essa a sua forma de dizer que gostava de nós, pela porta sempre aberta, pela sopa quente, pelo calor humano ou pelo reconhecimento das primas, que nunca lhe pediram que mostrasse o Cartão de Identidade para provar que pertencia à Família, e eu, com a passagem dos anos, um adolescente quase, a já não achar tanta graça aos óculos de casca de laranja, mas a continuar a acreditar nele, no homem dos sete instrumentos, da Aldegalega, que já fora actor, pintor, poeta, enfermeiro naval e porteiro da noite, no Bairro Alto, consoante as possibilidades do dia, porque ele continuava a ser um tipo giro, que nunca falava do seu passado e que vivia o presente, como se o futuro não existisse. Eu não sabia ou não podia entender por que razão o actor, que até já tinha figurado no Dona Maria, havia de ser, como muitos diziam que era, o desgraçado, o vagabundo, o mal nascido, filho de trabalhadores de Cuba e do Alvito ou o bastardo, que outros afirmavam ser, do tio Contramestre, que tinha honras de placa numa das ruas da Aldegalega, homenagem ao construtor das primeiras barcaças do Tejo, marido da Tia dos lamentos, mãe do João e do relojoeiro da outra margem, outro dos meus heróis de infância, a qual, mesmo sendo remediada, se queixava, por hábito, da vida, possivelmente com razão, numa espécie de dialecto, entre o Algarvio e o Alcochetano, que eu dificilmente entenderia, mas donde ressaltava, invariavelmente, o amor pelos dois filhos, sem distinções, mas com uma acentuada e preocupante fixação no comportamento e estranha forma de vida do João, boémio e vagabundo, segundo a própria.
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E, então, vi, o João Dias ou o seu clone, ali sentado, à porta da Igreja, a fingir que não falava, que não era capaz de explicar como tudo tinha acabado daquela forma, sem nada para dar , a não ser o Alentejo em carne viva, vender ou trocar, mais do que não fosse uns quantos versículos, rabiscados em papel manteiga, que mais tarde outros cantariam, sem mencionarem o Autor, ou pior, indicando o nome de quem, aproveitando um momento de fraqueza do poeta, deles se apropriaria, sem rebuço, como das pinturas da sua natureza viva, de combatente por tudo em que acreditava, dos seus relatos de prisioneiro da Pide, por apoiante de todos os movimentos de oposição do tempo, desde o Nórton de Matos ao Dr. Arlindo Vicente, passando pelo General Delgado e por aí fora, enquanto a doença o não levou. Referiria ainda, em notas autobiográficas, a sua fuga de casa com quinze anos mal feitos, para fazer vida com uma jovem, meio cigana, meio algarvia e mais tarde, já com trinta e dois anos feitos, acabar por se casar e divorciar legalmente, de uma médica burguesa ou falsa progressista, como consta do intróito à sua pequena Obra, cujo primeiro exemplar, com erros ortográficos corrigidos à mão, dedica às primas ( e não só ) com todo o carinho do Autor.
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Não, aquele homem sentado à porta fechada da Igreja, refugiado no silêncio estudado dos que muito bem sabem o que fazem e o que querem dizer, nem devia ser mudo, nem jamais se poderia comparar, em termos de lucidez e astúcia, ao meu primo João, tão capaz de construir pontes, como de as derrubar, mas absolutamente avesso à conservação do silêncio como forma de vida. Faltava - lhe o sorriso aberto ou o rir provocante que o João tinha e punha em cada palavra, em cada gesto, como um desafio à vida, tão longe da falsa mudez que este, eventualmente, escolhera, com o único propósito de suscitar a compaixão ou a caridade dos outros pecadores. O João Dias era o Autor dos versos ruidosos, sentidos, que falavam , que gritavam, que diziam da cor de Catarina Eufémia, das Generosas mãos do povo, do Alvito ou daquela interrogação pungente, cujas resposta ele bem conhecia, sobre as causas e os causadores de tudo isso e que o fizera descrever , interrogando – se, sobre um Alentejo queimado / De sol encharcado em pranto / Quem te traz roubado / Quem te enluta o canto / Meu corpo ceifado / De raiz sangrando , mas sabendo perfeitamente os enredos e não precisando que ninguém lhe respondesse.
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Quando o sino tocou na Torre da Igreja e a porta se abriu, o surdo ouviu e o mudo disse:
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- Que porra de vida esta… Desmascarado o silêncio, colocou a boina das esmolas, bem à vista e sorriu – me, sem o mínimo sinal de arrependimento pela farsa. Depois, calmamente, fechou o canivete, guardou as cascas de laranja num saco de pano e olhando-me bem de frente, voltou a sentar-se, com as pernas em cruz, retomando, sem o mínimo rebuço ou sinal de arrependimento, a cena, mil vezes ensaiada, de astucioso mediador de mal - entendidos, entre o silêncio e os sinos.
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