Exposição, Lagos, 2013 (poema transcrito da mesma exposição) Entrou pela janela o anjo camponês Com a terceira luz na mão Minucioso, habituado aos interiores do cereal dos utensílios Que dormem na fuligem; Os seus olhos não compreendem bem os símbolos desta colheita: Hélices, motores furiosos; e estende ainda mais os braços Planta no céu, como uma árvore, a chama do candeeiro. As outras duas luzes são lisas, ofuscantes Lembram a cal, o zinco branco nas pedreiras Ou nos umbrais de cantaria aparelhada Bruscamente; a arder, há o mesmo branco na lâmpada do tecto O mesmo zinco nas máquinas que voam fabricando o incêndio E assim, por toda a parte, a mesma cal mecânica vibra os seus cutelos. Ao alto, á esquerda onde aparece a linha da garganta A curva distendida como um grito O som é impossível Impede-o pelo menos o animal fumegante Com o peso das patas Com os longos músculos negros. Sem esquecer o sal silencioso no outro coração: Por cima dele Inútil a mão desta mulher de joelhos entre as penas do touro. Em baixo, contra o chão de tijolo queimado Os fragmentos de uma estátua Ou o construtor da casa já sem fio de prumo, barro, sestas pobres? Quem tentou salvar o dia, o seu resíduo de gente e poucos bens? Opor à química da guerra, aos reagentes dissolvendo a construção, As traves, este gládio, esta palavra arcaica? Mesa, madeira posta próximo dos homens: Pelo corte da plaina, a lixa ríspida, A cera sobre o betume, Os nós, e dedos tacteando as ultimas rugosidades; Morosamente, com o amor do carpinteiro ao objecto que nasceu para viver na casa No sitio destinado há muito Como se fosse, quase, uma criança da família. O pássaro A sua anatomia rápida Forma cheia de pressa, que se condensa, apenas o bastante para ser visível no céu, Sem o ferir Modelo de outros voos: nuvens e vento leve, folhas Agora atónito, abre as asas no deserto da mesa Tenta gritar às falsas aves que a morte é diferente: Cruzar o céu com a suavidade de um rumor e sumir-se. Cavalo Reprodutor de luz nos prados Quando respira, os brônquios Dois frémitos de soro Exalam essa névoa que o primeiro sol Transforma numa crina trémula sobre os pastos e éguas Mas aqui marcou-o o ferro dos lavradores que o anjo ignora E endureceu-o de tal modo que se entrega Como as bestas bíblicas, ao tétano, ao furor. Outra mulher: o susto a entrar no pesadelo É apenas peso: seios donde os mamilos pendem Gotas duras de leite e medo Quase pedras memória tropeçando em árvores, parentes, Num descampado vagaroso E amor também Espécie de peso que produz por dentro da mulher os mesmos passos lentos. Casas desidratadas no alto forno E olhando-as, momentos antes de ruírem, o anjo desolado pensa: Entre detritos sem nenhum cerne ou água, como anunciar Outra vez o milagre das salas, dos quartos Crescendo cisco a cisco, filho a filho? As máquinas estranhas, os motores com sede, Nem sequer beberam o espirito das minhas casas Evaporaram-no apenas. O incêndio desce Do canto superior direito Sobre os sótãos, Os degraus das escadas a oscilar Hélices, vibrações, percutem os alicerces E o fogo, veloz agora Fende-os, desmorona toda a arquitectura As paredes áridas desabam Mas o seu desenho sobrevive no ar Sustém-no a terceira mulher A ultima, Com os braços erguidos Com o suor da estrela tatuada na testa. (Autor desconhecido)
1 comentário:
É uma fabulosa leitura do Guernica! Uma leitura "inteira" que é possível acompanhar através da memória...
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