Quero trazer a poesia para a rua
Vê-la descalça a pisar
A terra e as pedras
Sem medo de assumir
A sujidade dos dias
Quero poemas com cheiro e ruído
Que nos acompanhem pela casa
Sem pejo de ir à casa de banho
Quando é preciso
Quero as palavras fumegantes
Directamente recebidas dos tachos e das panelas
Ao lume
Com sons do óleo a crepitar na frigideira
E do molho que o esquecimento
Já queimou
Quero as letras desossadas e indecisas
A agruparem-se umas com as outras
Num acaso feito de desperdício
No balde do lixo
Quero servi-las à mesa do desconforto
Do fim do dia
E regar-lhes o cansaço
Com bom vinho
Quero acariciá-las, já desfeitas
Na cinza do cinzeiro
E depois, levá-las para a cama do desejo
E transformá-las em almofadas fofas de sonhos
E quando acordar de noite,
Sobressaltada pelos pesadelos
Quero que elas me abracem
E me renovem
O sentir da realidade
E quando, o meu dia de partida,
Chegar
Amortalhem-me com folhas de dicionário
E abecedários lúdicos, desses que se compram
Para as crianças
Quero continuar a brincar com as palavras
No jardim do Além
E, talvez, eu até convença Deus
A tornar-se um poeta
Ana Wiesenberger (in Dias Incompletos)
Sem comentários:
Enviar um comentário