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segunda-feira, 29 de julho de 2013

Carlos Rodrigues - “ O ALMOCREVE DE ESTÓI “


“ O ALMOCREVE DE ESTÓI “
( Lenda Algarvia )

Foi ao passar por Milréu, que em ruínas conhecidas,
O Ti Zé da Serra, um dia, Moura na costa viu,
Que é uma forma de expressão, que mal exprime o que sentiu
Ou terá imaginado, numa noite mal dormida:

Vinha de São João de Alportel, a Faro se dirigia
O Almocreve de Estói, com o burro carregado,
Trajecto que já fazia, com um olho aberto, outro fechado,
Por trilhos que bem sabia atreitos a mau olhado.

Ora quem não o conheceu, sabe tanto como eu,
Que só sigo o enunciado, a mais não sou obrigado,
Mas arrisco, não se trata de um herói de capa e espada,
É um homem de trabalho, este que passa em Milréu.

Contos ouvira a seus pais e estes de seus avós,
Mas aquele que então viveu nem familiar lhe pareceu
- Chamaste-me e eu estou aqui, sou a tua visão do céu –
Disse a Moura e mal o fez, logo ele perdeu a voz.



Seus cabelos resplandeciam, não de sol, mas do encanto.
Que nem trigo brilhava assim, quando o dia se acendia…
Viu, então, na sua imagem, mais do que transparecia,
Uma doçura oculta, sob o azul forte do manto .

- Já me prendeste, Princesa, desta não saio daqui –
Pensou ele - enquanto o burro fugia p’ra não mais ver
E a Moura ria, ria, do Almocreve a tremer,
Ele queria falar, não podia, tão pouco sair dali,

Tinha um zunido no ouvido e as pernas a dar de si,
Como naquele sonho, que ora lembrava, ora se perdia,
Como se o conhecesse, sabendo o que desconhecia,
Mas ela lê-lhe o pensamento e diz-lhe -Senta-te aqui,

Nesta cadeira de ouro puro te sentirás mais seguro,
Estás cansado de seres pobre, bem o sei, José Coimbra,
Que até o nome te trocam, os que te pesam, na sombra:
Zé da serra, Zé do burro, Zé da canga, Zé p’ra tudo.

Foste p’la vida enganado, estás sempre em guerra contigo,
Carregando tua cruz, eu, pelo Crescente, fui feliz,
Hoje estou encantada, por coisas que nunca fiz
E quero ser libertada, dois irmãos tenho comigo,

Debaixo deste alçapão, desce, se fores capaz d ‘enfrentar
O que te digo , que em feras estão transformados,
Os teus piores receios, liberta-os e serás libertado
E nós também, de quem aqui nos prendeu, fazendo crer


Estarmos todos amarrados, castigados sem porquê,
Não entendes o que digo… já vi, falo do castigo
De estar e não estar aqui, cumprindo o que não faz sentido…
Três condições cumprirás, três vezes baterei o pé,

E o que mais ambicionares, aqui te será concedido,
Permite que te apresente meus irmãos de sofrimento
( E eis que duas feras do mato, ao soar dos batimentos
Se apresentam a seu lado, num quadro de Bosh, horrendo ):

Um leão espumando raiva e uma serpente medonha
- Já podes falar, Almocreve, diz-me cá o que pensas
Ser, aqui, tua missão, não temas meus irmãos, avança,
- Temo mais as condições para me livrar deste sonho…

Aqui não há qualquer teia, nem sequer o bicho aranha,
Que te enreda o pensamento, eis o apontamento
Do que te compete acordar, medita neste momento,
Em tudo o que tens desejado, mas fá-lo lesto e sem manha.

- Três passos tens de seguir, meu irmão te há de engolir
E três vezes vomitar, minha irmã te há de abraçar,
- Quantas vezes ? - Já te disse, até chagas te causar,
E eu por fim te hei de beijar e sugar da pele, se o conseguir,


Os óleos do teu baptismo e se a tanto resistires
Ou por tal caíres de joelhos, seja a Verdade mais forte
E que outra vida te explique a razão da tua sorte,
Te valha, então, tua cruz, quando deixares de existir.

E o Almocreve tremeu, propôs pensar na proposta,
Ela duas barras de ouro, lhe daria para começar,
Já lhe mudavam a vida, ele havia de voltar,
Àquelas paredes de ouro, por ela, pelo seu tesouro,

Se não estivesse a sonhar, ela sorriu e acedeu,
Vai lá então – disse a Moura – não as trates com desdém,
As tábuas te dou por bem e mais por ti eu farei,
Mas se pensares em traição, outra em mim verás, que não eu,

Que hoje sou a pedra transformada, a pergunta e a resposta
Que procurais, em vão, nesta terra, no sangue que derramais,
Mas amanhã, posso ser faca, lança, espada e muito mais,
Espetada no teu peito… Vós, Cristãos, nada sabeis

Do caminho verdadeiro, tomais o que vos não serve,
Pela estrada errada andais, se só tendes por ambição
O ouro que nos roubais, perdeis a alma e a razão,
Não te iludas, Almocreve, vai em paz, mas volta breve.

Se bem a ouviu o Zé da Serra, mais lesto chegou a casa,
Com a sensação de estar rico e livre do seu patrão,
Ganhou asas nas pernas, diz-nos a lenda em questão,
Mas a promessa esqueceu e escavará sua desgraça.

Já estava a mulher dormindo, quando entrou silencioso,
Logo escondeu seu tesouro, para o que desse e viesse,
De momento achou por bem que no segredo ficasse
Tudo o que lhe acontecera, não lhe aparecesse o invejoso,

P’ra lhe roubar a conquista daquele ouro bem suado,
Mas assim não sucedeu, que dormir nem conseguiu
E em vez de descansar, só pesadelos colheu,
Ora e nos dias seguintes não cumpriu o acordado,

Fez negócios desastrosos, cedo estava arruinado
E ainda mais miserável, só vendo uma solução,
Vender as placas de ouro no mercado ou em leilão
E se assim pensou pior fez, sem o devido cuidado.

Foi à gaveta secreta e olhou-as deliciado,
Como tábuas de salvação, mas à medida que olhava,
Seus olhos se enublavam ou o tesouro lhe negava
O direito de ser tocado, por via do mau olhado


Ou por que, como diz o Povo, quase sempre com acerto,
Uma desgraça nunca vem só, outras virão, em breve…
E aqui se revela a questão da cegueira do Almocreve,
Que ele confirmará, aos gritos, pelas ruas fazendo eco:

Estou cego ! Estou cego ! Um curandeiro ou uma boa maga
Me livre da escuridão, que ver como via não vejo,
Se não como a visão dessa Moura que me suga um beijo,
Um leão que me engole e vomita, uma cobra que me chaga…

Ó homem – diz-lhe a mulher angustiada – Vai a Faro,
Ao Cura ou ao da vista, que tratam doenças raras,
- Assim farei – responde ele – se me arranjares uma vara
E um burro velho, como eu, sem vergonha na cara…

Mas não o sendo, realmente, lhe mente o Zé da Serra,
Que já tem jumento aprontado e vai é direitinho a Milréu,
Já em Estói, perto das pedras, um sussurro claro ouviu,
- Sou eu – diz a Moura – Vindes em paz ou por guerra ?

Eco profundo e pungente de quem não é deste mundo,
Sentiu-o ele – digo eu – que mo diz o sentimento,
Porque chora o Almocreve, de tardio arrependimento,
Pois pena da Moura e seus irmãos sente, lá no fundo,


Infiéis serão, mas sofridos, não mereciam tal pena,
Ou castigo tão severo, para toda a eternidade,
Também a Moura o pressente e lhe perdoa de verdade –
- És um homem bom, Zé Coimbra - diz ela, sem fazer cena;

Volta por donde vieste, p’ra tua casa, sem medo,
Verás de novo presente, o teu lar, tua mulher e o monte,
Mas tudo o que vias dantes, verás de um modo diferente,
Segue o que te vai na alma, sem temores, eis o segredo,

Se o seguiu ninguém o sabe, mas o milagre esse é certo,
Sentou-se à porta de casa, à mulher, disse– Já vejo,
Até o que nunca vi: Que o sol é puro desejo,
As aves, essas, são livres e hão de sonhar decerto

Seja o céu azul ou vermelho, nós aqui somos o espelho,
Que se perdeu no deserto, da noite, do céu sem teto,
Às vezes vemo-nos mal, não somos mais que a poalha,
Das estrelas que há no céu, não sei se é isso, estou velho…

Fala baixo o almocreve, descobriu outro tesouro,
Está tão perto que nem sabe como antes nunca o viu,
Não voltará a Milréu, mas não esquece o que aprendeu
Que até o Povo o sabia: Nem tudo o que luz é ouro .

- Se a outras tábuas se deu ? Decerto... mas quem sou eu,
Para a lenda, aqui, ampliar, sem a devida procuração
Da Moura e dos seus irmãos, se é que ainda lá estão,
Cumprindo o encantamento, nas ruínas de Milréu.

Carlos A.N. Rodrigues, 30 / 07 / 2013

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