No Leito da Vida
Uma tragédia em dois actos
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* Rui Pedro Gato N. S.
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A tarde dissolve-se sobre a terra, sobre a nossa casa. O céu desfia um sopro quente nos rostos. Acende-se a lua, e com ela acende-se o teu rosto apagado, cansado, derrotado. O rosto ausente de ti.
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Olhas o vazio que em cima tens, o tecto. Eu choro o vazio que em ti me lembra o chão. A lua foca-te como se numa peça de teatro na qual eras a actriz principal, fizesses o monólogo final. Calada, imóvel, condenada. A lua eterna foca o cair do teu pano.
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Foi sob esta mesma lua que nos beijámos a primeira vez. Lembras-te? Eu lembro-me. Lembro-me como se não tivesse acontecido. E tinhas tu 17 anos. Parece impossível. Já fomos jovens...eras linda. Tinhas vida que dava para ti e para mim. Eras jovem. E eu estava lá, nos teus 17 anos... Lembras-te? Lembro-me como de cima da colina te dei a cidade, com todas as suas luzes. Como de cima da colina víamos a cidade insignificante e ignorante de nós. Adoravas que te levasse a passear de carro. E eu adorava ver os teus olhos brilharem. E ao som do piano de Chopin fizemos amor pela primeira vez, quando os teus pais tinham ido ao norte ver a tua prima Matilde. Lembro-me tão bem. Eras linda e jovem. Abraçaste-me e eu protegi-te e prometi que nunca mal algum te iria acontecer. Beijei-te a testa e os teus olhos brilharam. Eu namorava com a Graça na altura. Lembras-te? Eu lembro-me que eras linda.
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A vida dissolve-se sobre a terra. Sobre o tempo que imóvel nos vê passar. A vida continua lá fora, e tu vais continuar a morrer aqui dentro e a não te lembrares que me amas. Não te lembras que fui jovem? Hoje um velho careca e gasto olha-me do espelho. É normal que não te lembres de mim. Nem eu próprio me reconheço nesta carcaça bolorenta. Ao lado da tua cama uma foto transporta-me 60 anos no tempo. E tens 20 anos. Eras tão linda, na tua camisa de dormir, a tua camisa transparecia um corpo que por todos os poros transpirava feminilidade. A tua pele jovem e macia. Nunca beijei pele mais macia. O teu cabelo despenteado caído sobre os teus brilhantes e felizes olhos... Foi pouco tempo depois que engravidaste. Lembras-te? Lembro-me como choravas quando me contaste. Fiquei sem fôlego. Olhei a cidade lá em baixo e a sua insignificância devolveu-me a mim. E decidi. Lembro-me como choraste com a minha decisão. Mas decidimos bem. Tratei de tudo. Paguei tudo. Tenho pena que essa acção te inviabilizasse de ter filhos até hoje. Mas não tínhamos outra opção na altura. Juro-te que eu não tinha. Afastaste-te de mim... Mas voltaste. Sabias que me amavas. Mais linda que nunca com os teus olhos brilhantes. Foi a opção correcta.
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Os teus olhos baços, sem vida continuam a olhar o tecto. Que pensarás? Pensarás? Serás alguém atrás dessa ausência? Essa doença que te consumiu ao longo destes últimos anos. A doença que apagou tudo o que te fazia ser. A tua memória.
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Gostava que te lembrasses daquele dia em que vim de propósito de Londres. Eu lembro-me. A tua mãe tinha morrido. O céu pesava nesse dia, e eu chorei contigo. Lembraste como era raro eu chorar? Chorei contigo. E prometi-te que eu não morria e tu prometeste-me que não morrias... o que estás a fazer agora?
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Que sentido faz eu ficar cá depois de desapareceres? Com quem vou amar o passado amanhã? A quem vou dizer que eras linda e jovem? O que me impede de me deitar a teu lado e morrer contigo?
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Já é noite, o sopro continua quente e abafado... era noite também quando vimos na televisão o Armstrong pisar a lua. E ao mesmo tempo que os teus olhos brilhavam maravilhados e sonhadores eu te dizia que uma montagem de uns americanos dissimulados não me enganava. Mas no fundo, cá dentro, também sonhava. Foi nesta casa que te comprei que assistimos ao “pequeno passo.” E foi nesta mesma janela por onde o sopro morto entra que ficámos madrugada dentro e me prometeste que um dia lá faríamos um piquenique. Lembras-te? A lua eterna continua distante...a diferença é que hoje também distante estás. E eu no meio das duas...a lua eterna e tu, finita.
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As tuas mãos estão geladas... não se ouve nada neste quarto senão o meu pensamento e o teu arfar cansado. Dirijo-me para a varanda, também eu cansado...a rua continua a mesma...os mesmos postes, o velho marco do correio, a mercearia do Américo, a mesma rua continua a banhar a nossa casa. Lembro-me como se fosse hoje... dormias e eu, acabado de acordar, desta varanda vi um tanque passar, frente ao sr. Américo. E corri a acordar-te. Lembras-te? Quando percebeste o que se passava saíste de pijama de cravo na mão. E eu vi-te desta janela. Não vi o 25 de abril nas ruas. Vi o 25 de abril em ti.
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Estamos sozinhos, como sempre estivemos sempre que estivemos. E tu calada, na noite, pela calada, onde sempre fizemos tudo o que fizemos.
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Estás na cama, sozinha na tua cabeça, na tua doença. E eu na varanda, sozinho, prisioneiro do meu pensamento...Eras linda e jovem...
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Faz-se tarde. E hoje não posso ficar mais tempo. Sabes que dia é amanhã? Lembras-te? Faço 60 anos de casado com a Graça. 60 anos...Como nós passamos rápido pelo tempo. O Rodrigo e a Maria já devem ter chegado a Lisboa. E sabes como a Graça fica toda contente quando eles trazem os netinhos lá a casa. Vamos renovar os votos. Grande festa querem eles fazer. Vamos renovar a mentira que é a vida... e tu perdida aqui dentro...aí dentro de ti...
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O velho veste o casaco, ajeita o cachecol e senta-se mais uma vez ao lado da cama. Passou o dia todo num silêncio pesado de ouvir e durante 10 minutos não se ouve mais do que o respirar a conta-gotas da velha. Ele levanta-se e na cómoda liga o velho gravador de cassetes e sai porta fora como se nunca tivesse entrado. E na cama, no rosto da velha - não sei se do reflexo da lua, se do som de um piano intemporal – parece que por instantes luzem os olhos... como se ele nunca tivesse saído.
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Olhas o vazio que em cima tens, o tecto. Eu choro o vazio que em ti me lembra o chão. A lua foca-te como se numa peça de teatro na qual eras a actriz principal, fizesses o monólogo final. Calada, imóvel, condenada. A lua eterna foca o cair do teu pano.
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Foi sob esta mesma lua que nos beijámos a primeira vez. Lembras-te? Eu lembro-me. Lembro-me como se não tivesse acontecido. E tinhas tu 17 anos. Parece impossível. Já fomos jovens...eras linda. Tinhas vida que dava para ti e para mim. Eras jovem. E eu estava lá, nos teus 17 anos... Lembras-te? Lembro-me como de cima da colina te dei a cidade, com todas as suas luzes. Como de cima da colina víamos a cidade insignificante e ignorante de nós. Adoravas que te levasse a passear de carro. E eu adorava ver os teus olhos brilharem. E ao som do piano de Chopin fizemos amor pela primeira vez, quando os teus pais tinham ido ao norte ver a tua prima Matilde. Lembro-me tão bem. Eras linda e jovem. Abraçaste-me e eu protegi-te e prometi que nunca mal algum te iria acontecer. Beijei-te a testa e os teus olhos brilharam. Eu namorava com a Graça na altura. Lembras-te? Eu lembro-me que eras linda.
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A vida dissolve-se sobre a terra. Sobre o tempo que imóvel nos vê passar. A vida continua lá fora, e tu vais continuar a morrer aqui dentro e a não te lembrares que me amas. Não te lembras que fui jovem? Hoje um velho careca e gasto olha-me do espelho. É normal que não te lembres de mim. Nem eu próprio me reconheço nesta carcaça bolorenta. Ao lado da tua cama uma foto transporta-me 60 anos no tempo. E tens 20 anos. Eras tão linda, na tua camisa de dormir, a tua camisa transparecia um corpo que por todos os poros transpirava feminilidade. A tua pele jovem e macia. Nunca beijei pele mais macia. O teu cabelo despenteado caído sobre os teus brilhantes e felizes olhos... Foi pouco tempo depois que engravidaste. Lembras-te? Lembro-me como choravas quando me contaste. Fiquei sem fôlego. Olhei a cidade lá em baixo e a sua insignificância devolveu-me a mim. E decidi. Lembro-me como choraste com a minha decisão. Mas decidimos bem. Tratei de tudo. Paguei tudo. Tenho pena que essa acção te inviabilizasse de ter filhos até hoje. Mas não tínhamos outra opção na altura. Juro-te que eu não tinha. Afastaste-te de mim... Mas voltaste. Sabias que me amavas. Mais linda que nunca com os teus olhos brilhantes. Foi a opção correcta.
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Os teus olhos baços, sem vida continuam a olhar o tecto. Que pensarás? Pensarás? Serás alguém atrás dessa ausência? Essa doença que te consumiu ao longo destes últimos anos. A doença que apagou tudo o que te fazia ser. A tua memória.
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Gostava que te lembrasses daquele dia em que vim de propósito de Londres. Eu lembro-me. A tua mãe tinha morrido. O céu pesava nesse dia, e eu chorei contigo. Lembraste como era raro eu chorar? Chorei contigo. E prometi-te que eu não morria e tu prometeste-me que não morrias... o que estás a fazer agora?
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Que sentido faz eu ficar cá depois de desapareceres? Com quem vou amar o passado amanhã? A quem vou dizer que eras linda e jovem? O que me impede de me deitar a teu lado e morrer contigo?
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Já é noite, o sopro continua quente e abafado... era noite também quando vimos na televisão o Armstrong pisar a lua. E ao mesmo tempo que os teus olhos brilhavam maravilhados e sonhadores eu te dizia que uma montagem de uns americanos dissimulados não me enganava. Mas no fundo, cá dentro, também sonhava. Foi nesta casa que te comprei que assistimos ao “pequeno passo.” E foi nesta mesma janela por onde o sopro morto entra que ficámos madrugada dentro e me prometeste que um dia lá faríamos um piquenique. Lembras-te? A lua eterna continua distante...a diferença é que hoje também distante estás. E eu no meio das duas...a lua eterna e tu, finita.
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As tuas mãos estão geladas... não se ouve nada neste quarto senão o meu pensamento e o teu arfar cansado. Dirijo-me para a varanda, também eu cansado...a rua continua a mesma...os mesmos postes, o velho marco do correio, a mercearia do Américo, a mesma rua continua a banhar a nossa casa. Lembro-me como se fosse hoje... dormias e eu, acabado de acordar, desta varanda vi um tanque passar, frente ao sr. Américo. E corri a acordar-te. Lembras-te? Quando percebeste o que se passava saíste de pijama de cravo na mão. E eu vi-te desta janela. Não vi o 25 de abril nas ruas. Vi o 25 de abril em ti.
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Estamos sozinhos, como sempre estivemos sempre que estivemos. E tu calada, na noite, pela calada, onde sempre fizemos tudo o que fizemos.
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Estás na cama, sozinha na tua cabeça, na tua doença. E eu na varanda, sozinho, prisioneiro do meu pensamento...Eras linda e jovem...
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Faz-se tarde. E hoje não posso ficar mais tempo. Sabes que dia é amanhã? Lembras-te? Faço 60 anos de casado com a Graça. 60 anos...Como nós passamos rápido pelo tempo. O Rodrigo e a Maria já devem ter chegado a Lisboa. E sabes como a Graça fica toda contente quando eles trazem os netinhos lá a casa. Vamos renovar os votos. Grande festa querem eles fazer. Vamos renovar a mentira que é a vida... e tu perdida aqui dentro...aí dentro de ti...
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O velho veste o casaco, ajeita o cachecol e senta-se mais uma vez ao lado da cama. Passou o dia todo num silêncio pesado de ouvir e durante 10 minutos não se ouve mais do que o respirar a conta-gotas da velha. Ele levanta-se e na cómoda liga o velho gravador de cassetes e sai porta fora como se nunca tivesse entrado. E na cama, no rosto da velha - não sei se do reflexo da lua, se do som de um piano intemporal – parece que por instantes luzem os olhos... como se ele nunca tivesse saído.
Rui Gato 2779 AIS
1 comentário:
OLá
Gostei de ler, prende na leitura e imaginei o desenrolar da história. Fiquei triste mas a vida nem sempre nos alegra...e além do mais como escrita pode ser ficção...:)
Beijos estrelados
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