Segunda-feira, 24 de Janeiro de 2011
VIDAVIVIDA
O voto da terceira idade
Antunes Ferreira
A Senhora Dona Olívia Berta Alves de Noronha Lopes Pereira é viúva, tem 91 anos, usa bengala, está lucidíssima e… foi votar. Vota sempre. É goesa e é minha tia, o que me deixa mais do que babado, babadíssimo. Elucido: é tia da minha mulher, a Raquel, pois é irmã da minha falecida sogra, mas também é minha; por afinidade? Não senhores, por adopção mútua. O que me faz muito feliz, podem crer. E, sem falsas modéstias nem rebuço, creio que a ela também.
O voto é a arma do Povo, dizia-se no tempo do MFA. Um parênteses. Para quem ainda não saiba por mor de ser jovem, para os distraídos, para os saudosistas e, principalmente, para aqueles que se esfalfam por esquecer, o MFA foi o Movimento das Forças Armadas que em 25 de Abril de 1974 derrubou o que se auto-denominava Estado Novo; uma ditadura corporativa. Há quem lhe chame um hiper paternalismo. Pois. Com a PIDE, depois DGS, com o Tarrafal e com a Censura, chame-se-lhe o que se lhe quiser chamar.
A Senhora Dona Olívia Berta, para a família é a Tiazinha e ponto. Foi professora primária por terras da terra dela, enquanto o marido, o Chefe António Lopes Pereira, para a malta o Tonecas, era polícia. E não tiveram filhos. Por isso, empenharam-se na tarefa de ajudar a criar as miúdas e os miúdos Alcântara de Melo. Ele a fazer-lhes as vontades, Avô, mesmo que tio, é Avô; ela a ensinar-lhes a tabuada e os rios de Portugal e seus afluentes. E mais coisas dessas, como caligrafias em cadernos de duas linha, História de Portugal e afins.
Logo, os meus filhos são, óbvia e naturalmente, os netos e os meus netos – bisnetos. Quando o marido faleceu, a Senhora Dona Olívia Berta continuou, se possível com empenhamento redobrado, a meritória tarefa de acompanhar a segunda e a terceira geração dos Antunes Ferreiras. Imaginam, por certo: tal como hoje treinadores e futebolistas repetem todas as semanas, trata-se de alcançar os objectivos. Ela alcançou.
Suspeito, quase podia jurar a pés juntos, que a Senhora Dona Olívia Berta foi votar Cavaco. Sair de casa, auxiliada pela Senhora Dona Branca, boa Amiga de há anos, mais nova do que ela, com a frialdade que corre, para ir às urnas, só pelo Senhor Professor. Não é que ela diga o que quer que seja, o voto é secreto, mas de certeza, certezinha que no boletim pôs a cruzinha no quadradinho que escolheu.
Atente-se no pormenor. A Senhora Dona Olívia Berta vive num apartamento que o casal comprou que é no segundo andar de um prédio em Carcavelos. Sem elevador. Pouco sai de casa, por tal limitação geográfico-habitacional, fá-lo com a dificuldade natural, aos domingos quando nós a vamos buscar para almoçar e uma vez por mês para ir à Caixa Geral de Depósitos tratar da pensão.
Assinámos um tratado, um verdadeiro Tordesilhas, que divide os pagamentos das refeições dominicais. A ordem, perdão, a proposta foi dela; eu limitei-me a assiná-la, mesmo sem a presença de tabelião. Filho, um domingo pago eu, no seguinte pagas tu. Segundo fontes bem informadas, a Senhora Professora administrava o comportamento dos seus alunos, incluindo os dos sobrinhos-filhos, com a persuação instrumental da menina de cinco olhos. Vejam se eu não aderisse ao acordo… Nestes transes é muito melhor prevenir do que remediar.
Julgo ter deixado aqui o retrato possível da Senhora Dona Olívia Berta. Toda a gente, exceptuados os descendentes que assumiu, a trata por Senhora Dona Olívia. Eu uso Senhora Dona Olívia Berta. O que lhe dá muito gozo, já mo confessou. Porém, relendo o que até aqui escrevi, reparo que faltam duas notas fundamentais.
A primeira: vive sozinha, apenas com as suas rezas. Que lhe ocupam uma boa parte do dia. Claro que tem uma empregada, a Emília, mas apenas duas vezes por semana e cada desses dias, duas horas. Quando vai passar as festas a nossa casa, fica satisfeitíssima, mas é imperativa. Dois dias passados, vá lá três, pelos Natais e Anos Novos, vou para minha casa, filhos, já vos estou a dar muita maçada. Qualquer alegação é improfícua. Vai mesmo. Isto é, levo-a.
A segunda: é uma fotocópia da outra Olívia, a Palito, eterna namorada do marujo dos espinafres, o Popeye. Explico; deve pesar à volta dos trinta e poucos quilitos. Quando sai no Inverno disfarça muito bem; não garanto, mas diz que veste sete peças de roupa entre interiores e exteriores, umas por cima das outras. A útima é uma capa de abotoar. Por via do frio. Mas não se intimida. Ah, já me esquecia. Tomava banho sem a presença ou a assistência da Emília, para «preservar a privacidade» dela. Depois de largas e delicadas conversações, há um mês que já não é assim. Noventa e um anos são muitos anos ainda por cima de completa lucidez.
Pois sim senhores, foi votar. Ia voando com o ventanal, a Senhora Dona Branca quase a perdia, outra Senhora que passava ajudou a agarrá-la, prendê-la à pista quase de descolagem. Nós não pudemos ir buscá-la, por motivos pouco simpáticos que nos têm apoquentado. Mas essas são outras contas de outro rosário. Quando isso acontece, a Dona Olívia Berta não se queixa, muito menos amua. De resto, nunca o faz. Gosto, realmente, muito dela. Por isso, mas por muito mais. Um dia, conto.
A Raquel telefonou-lhe, como todas as noites o faz. Estava felicíssima. Contou toda a aventura que foi mais uma ida à mesa de voto, as peripécias eólicas, mas, sobretudo um pormenor que acentuou com uma gargalhadinha: sabes filha, passei à frente das pessoas que já lá estavam. É a terceira idade… E elas não se zangaram; pelo menos, não dei por isso. Só se o fizeram nas minhas costas, sabe-se lá…
Não falei ao telefone com ela. A Senhora Dona Olívia Berta estava tão satisfeita que eu não quis intercarlar-me na conversa; inter calei-me. Mas, amanhã vou dar-lhe os parabéns. Merece-os. O eleito dela foi… eleito. E à primeira volta. Tristeza, tristezas de um povo que não tem memória. Se calhar nem precisa de a ter; não precisa, nem quer.
Contudo, ainda que ela saiba que eu não votei no Senhor que prolongou o arrendamento do palácio de Belém, aliás pago por todos nós e não por ele, não tecerei com a Senhora Dona Olívia Berta estas teias, não lhe transmitirei estes comentários, não referirei a minha desilusão. Não é preciso porque, repito, ela sabe que foi assim; e é; e será.
Neste particular, a Senhora Dona Olívia Berta também não iria mudar aos 91 anos. E, além disso, ela não merecia que o fizesse. Deixá-la ficar com o exercício da cidadania, com a bengala, com a provação de descer e subir a escada para o seu segundo andar. Pois se até passou à frente das pessoas que já lá estavam, por mor da terceira idade…
O voto da terceira idade
Antunes Ferreira
A Senhora Dona Olívia Berta Alves de Noronha Lopes Pereira é viúva, tem 91 anos, usa bengala, está lucidíssima e… foi votar. Vota sempre. É goesa e é minha tia, o que me deixa mais do que babado, babadíssimo. Elucido: é tia da minha mulher, a Raquel, pois é irmã da minha falecida sogra, mas também é minha; por afinidade? Não senhores, por adopção mútua. O que me faz muito feliz, podem crer. E, sem falsas modéstias nem rebuço, creio que a ela também.
O voto é a arma do Povo, dizia-se no tempo do MFA. Um parênteses. Para quem ainda não saiba por mor de ser jovem, para os distraídos, para os saudosistas e, principalmente, para aqueles que se esfalfam por esquecer, o MFA foi o Movimento das Forças Armadas que em 25 de Abril de 1974 derrubou o que se auto-denominava Estado Novo; uma ditadura corporativa. Há quem lhe chame um hiper paternalismo. Pois. Com a PIDE, depois DGS, com o Tarrafal e com a Censura, chame-se-lhe o que se lhe quiser chamar.
A Senhora Dona Olívia Berta |
Logo, os meus filhos são, óbvia e naturalmente, os netos e os meus netos – bisnetos. Quando o marido faleceu, a Senhora Dona Olívia Berta continuou, se possível com empenhamento redobrado, a meritória tarefa de acompanhar a segunda e a terceira geração dos Antunes Ferreiras. Imaginam, por certo: tal como hoje treinadores e futebolistas repetem todas as semanas, trata-se de alcançar os objectivos. Ela alcançou.
... e pôs a cruzinha |
Atente-se no pormenor. A Senhora Dona Olívia Berta vive num apartamento que o casal comprou que é no segundo andar de um prédio em Carcavelos. Sem elevador. Pouco sai de casa, por tal limitação geográfico-habitacional, fá-lo com a dificuldade natural, aos domingos quando nós a vamos buscar para almoçar e uma vez por mês para ir à Caixa Geral de Depósitos tratar da pensão.
Assinámos um tratado, um verdadeiro Tordesilhas, que divide os pagamentos das refeições dominicais. A ordem, perdão, a proposta foi dela; eu limitei-me a assiná-la, mesmo sem a presença de tabelião. Filho, um domingo pago eu, no seguinte pagas tu. Segundo fontes bem informadas, a Senhora Professora administrava o comportamento dos seus alunos, incluindo os dos sobrinhos-filhos, com a persuação instrumental da menina de cinco olhos. Vejam se eu não aderisse ao acordo… Nestes transes é muito melhor prevenir do que remediar.
Julgo ter deixado aqui o retrato possível da Senhora Dona Olívia Berta. Toda a gente, exceptuados os descendentes que assumiu, a trata por Senhora Dona Olívia. Eu uso Senhora Dona Olívia Berta. O que lhe dá muito gozo, já mo confessou. Porém, relendo o que até aqui escrevi, reparo que faltam duas notas fundamentais.
A primeira: vive sozinha, apenas com as suas rezas. Que lhe ocupam uma boa parte do dia. Claro que tem uma empregada, a Emília, mas apenas duas vezes por semana e cada desses dias, duas horas. Quando vai passar as festas a nossa casa, fica satisfeitíssima, mas é imperativa. Dois dias passados, vá lá três, pelos Natais e Anos Novos, vou para minha casa, filhos, já vos estou a dar muita maçada. Qualquer alegação é improfícua. Vai mesmo. Isto é, levo-a.
Popeye e Olívia Palito |
Pois sim senhores, foi votar. Ia voando com o ventanal, a Senhora Dona Branca quase a perdia, outra Senhora que passava ajudou a agarrá-la, prendê-la à pista quase de descolagem. Nós não pudemos ir buscá-la, por motivos pouco simpáticos que nos têm apoquentado. Mas essas são outras contas de outro rosário. Quando isso acontece, a Dona Olívia Berta não se queixa, muito menos amua. De resto, nunca o faz. Gosto, realmente, muito dela. Por isso, mas por muito mais. Um dia, conto.
Terceira idade também vota |
Não falei ao telefone com ela. A Senhora Dona Olívia Berta estava tão satisfeita que eu não quis intercarlar-me na conversa; inter calei-me. Mas, amanhã vou dar-lhe os parabéns. Merece-os. O eleito dela foi… eleito. E à primeira volta. Tristeza, tristezas de um povo que não tem memória. Se calhar nem precisa de a ter; não precisa, nem quer.
Contudo, ainda que ela saiba que eu não votei no Senhor que prolongou o arrendamento do palácio de Belém, aliás pago por todos nós e não por ele, não tecerei com a Senhora Dona Olívia Berta estas teias, não lhe transmitirei estes comentários, não referirei a minha desilusão. Não é preciso porque, repito, ela sabe que foi assim; e é; e será.
Neste particular, a Senhora Dona Olívia Berta também não iria mudar aos 91 anos. E, além disso, ela não merecia que o fizesse. Deixá-la ficar com o exercício da cidadania, com a bengala, com a provação de descer e subir a escada para o seu segundo andar. Pois se até passou à frente das pessoas que já lá estavam, por mor da terceira idade…
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