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sábado, 10 de julho de 2010

Levantado do chão Ou a história da epopeia do operariado agrícola Alentejano contada ao mundo



09.Jul.10 :: Outros autores
José
 SaramagoEste estudo de João Aguiar vem comprovar como o talento do escritor se sobrepõe á identificação com esta ou aqueloutra escola ou estilo literário quando ele desce com segurança e criatividade “às raízes da condição humana e transmit(e), a grandeza e as misérias, a angústia, a alegria e o medo que acompanham a aventura absurda da vida”.
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«Eu sou um trabalhador
Eu sou um trabalhador rural
Que semeia e colhe o pão
Sustento de Portugal

Sustento de Portugal
Que trabalhador sou eu
Que semeia e colhe o pão
Mas esse pão nunca foi meu

Eu sou um trabalhador
Que o trabalho sempre honrou
Mas que em paga apenas come
O pão que o diabo amassou.
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Poema de Vicente Rodrigues (1910-1982)
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José Saramago, Prémio Nobel da Literatura em 1998 e recentemente falecido, escreveu e publicou o essencial da sua obra nos 20 anos anteriores à conquista desse prémio. O primeiro dos romances em que se revela o seu estilo próprio de escrita é precisamente Levantado do Chão. Publicado em 1980, representa para o autor «o último romance do Neo-Realismo, fora já do tempo neo-realista» (Reis, 1998, p.118). De facto, não sendo estritamente um romance neo-realista, Levantado do Chão pode ser visto como um entroncamento para onde confluiu toda uma forma de fazer literatura em Portugal no século XX.
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Nesta obra de ficção Saramago aborda, por um lado, a história da vida e morte do latifúndio, com efeito, desde a Idade Média até finais dos anos 70 e, por outro lado, num espaço histórico mais curto, a saga da família Mau-Tempo «que, em três gerações (Domingos Mau-Tempo, seu filho João e seus netos António e Gracinda, esta casada com outra personagem central, António Espada), vai conquistar a terra para as capacidades do seu trabalho, vai arrancar-se à vergonha das humilhações, vai preencher a fome de uma falta total. O romance é, assim, a história de um fatalismo desenganado, constantemente combatido pelo apontar da esperança feita luta» (Seixo, 1987, p.39). As duas ondas históricas entrelaçam-se num período de tempo que vai do final do século XIX até aos anos seguintes à Revolução de 25 de Abril de 1974. Esta articulação entre dois planos tem a vantagem de oferecer uma problematização assaz instigante do papel e do lugar do(s) indivíduo(s) no desenvolvimento histórico mais vasto.
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Não obstante a narrativa atravessar diferentes regimes políticos (anos finais da monarquia, a I República, a ditadura fascista do Estado Novo, o regime democrático), nota-se um corte de grande significado na e para a vida das personagens: o antes e o pós 25 de Abril. Por outras palavras, no que toca à melhoria das condições de vida do operariado agrícola alentejano e da possibilidade de este surgir como sujeito colectivo portador de uma história própria e de dinâmicas de profunda democratização da sociedade, nenhum dos regimes anteriores à democracia foi capaz de admitir tal processo. «Entre o latifúndio monárquico e o latifúndio republicano não se viam diferenças e as parecenças eram todas, porque os salários, pelo pouco que podiam comprar, só serviam para acordar a fome» (Saramago, 2000, p.34). Nesse sentido, a situação económica e social dos trabalhadores até 1974 era assim descrita por António Gervásio, operário agrícola e actor participante nas lutas contra o fascismo na região a partir dos anos 40, «os assalariados agrícolas eram trabalhadores privados dos direitos mais elementares. Não havia emprego certo. Não tinham subsídio de desemprego, de férias, de baixa, nem reforma, nem direitos sindicais. Eram trabalhadores sem direitos nas mãos dos grandes proprietários» (Gervásio, 2004, p.182) [itálicos nossos].
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Neste cenário, o proletariado alentejano assumiu-se como um actor social de primeira importância na resistência ao regime fascista e na reivindicação por melhores condições de vida e de trabalho. A conquista das oito horas diárias de trabalho, acabando com o sistema do trabalho de sol a sol (que chegava às catorze e dezasseis horas diárias de trabalho), em Abril e Maio de 1962 é, nesse aspecto, elucidativo da relevância inapagável da luta da classe trabalhadora agrícola alentejana na contestação à ditadura e nas aspirações a uma outra sociedade. No contexto do latifúndio – com o cortejo de miséria, opressão e vulnerabilidade das vidas das famílias operárias – a luta pela posse da terra evidenciava-se como um pilar central e como um objectivo primordial para esses trabalhadores. Com o processo revolucionário e democrático subsequente à revolução de 1974, a Reforma Agrária surgiu como uma necessidade e uma exigência imperiosa das populações laboriosas dos campos do Sul (margem esquerda do Ribatejo, Alto e Baixo Alentejo). É o próprio José Saramago que numa crónica em 1977 manifesta a naturalidade com que os trabalhadores alentejanos e ribatejanos tomaram e ocuparam herdades agrícolas: «se a terra está aí e daí não pode sair, são vossos os pés que caminham nela, são vossas as mãos que a trabalham, são dos vossos pais e avós os ossos que estão debaixo dessa terra, depois de terem trabalhado e sofrido o que os filhos ainda hoje trabalham, mas, sofrido, basta» (Saramago, 1999, p.39). O impacto das ocupações de terras, o número de trabalhadores envolvidos, a convicção com que defendiam o que consideravam ser justo era tal, que a Reforma Agrária foi consagrada legalmente, inclusive na Constituição de 1976. Com a Reforma Agrária formaram-se cooperativas e UCP’s (unidades colectivas de produção) com administração económica e política dos trabalhadores sob supervisão do Estado democrático. A gestão operária com a Reforma Agrária era, então, uma realidade.
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No fundo, as UCP’s tinham como características fundamentais «a exploração comum da terra» e a «gestão democrática» (Barros, 1981, p.117) das mesmas. Explicitando, o controlo democrático e popular de base consubstanciava-se no «poder dos colectivos de trabalhadores de eleger e demitir as direcções e de decidir sobre os diversos aspectos das novas unidade e/ou de controlar todos os actos de gestão» (idem, p.119).
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Contudo, logo em 1976 a Reforma Agrária começou a enfrentar fortes adversidades externas para além das dificuldades herdadas do latifúndio (terras abandonadas, baixa aplicação de maquinaria à produção agrícola). Com a aprovação da chamada Lei Barreto (lei 77/77 – lei de Bases da Reforma Agrária) os trabalhadores tiveram de começar a entregar herdades que não atingissem um novo patamar legal de pontuação das áreas a expropriar. O cerco pelos sucessivos governos e dos antigos grandes latifundiários à Reforma Agrária iria apertar-se nos anos imediatamente seguintes, com os ataques aos trabalhadores e às UCP’s a atingirem níveis quase impensáveis de repressão.
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A ênfase aqui colocada na repressão e na contra-ofensiva sobre a Reforma Agrária deve-se ao facto de esse ter sido o factor principal, e em última análise decisivo, da derrota do processo de transformação da propriedade fundiária nos campos do Sul. Numa frase, a Reforma Agrária não se desmoronou mas foi derrotada. Muito mais do que algumas ineficácias económicas e erros na condução do processo – inevitáveis em qualquer acção humana, mais ainda quando o processo é executado por indivíduos de uma classe trabalhadora que pela primeira vez na sua história de centenas de anos tinham a gestão económica, social e política das suas vidas nas suas mãos – foi a reacção de classe das classes dominantes e do aparelho de Estado que colocaram um ponto final na Reforma Agrária. Aliás, a Reforma Agrária atingiu patamares de viabilidade e desenvolvimento económico só postos em causa precisamente pela repressão que foi alvo. Lembre-se, a título meramente ilustrativo, alguns dos aspectos bem-sucedidos economicamente com o processo da Reforma Agrária: a) os postos de trabalho antes da Reforma Agrária que rondavam os 21.700 e que em 1976 se cifravam em 71.900 e que até 1982 inclusive tiveram sempre um efectivo de trabalhadores superior à base de partida. A área total das UCP chega aos 1.130.000 de hectares de 1975 a 77. A produção de bovinos passou de 55.000 cabeças, antes da Revolução de Abril e das ocupações de terra, para 84.000 em 1976 e 103.000 em 1977. A produção de ovinos e caprinos, respectivamente, de 272.000 cabeças para 401.000 e 437.000. A produção de cereais passou de 90.000 toneladas para as 240.000 toneladas em 1976. O arroz passou de 23.550 toneladas para 38.000 toneladas em 1977. Os tractores antes da Reforma Agrária eram apenas 2.690, quase dobrando em 3 anos (4.560) (Leal, 2005, p.255-256). Portanto, o povo operário como sujeito conseguiu conquistas sociais e económicas jamais vistas na região. Por conseguinte, a tese burguesa de que as massas operárias e populares não saberiam administrar colectivamente a produção cai por terra perante a evidência empírica das conquistas extraordinárias da Reforma Agrária alentejana. Perante o sucesso económico, político e social da Reforma Agrária só a repressão furiosa e o cerco económico e financeiro poderiam destruir a mais bonita das conquistas de Abril.
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Até 1980, data de publicação de Levantado do Chão, podemos registar alguns dados da repressão contra o proletariado agrícola alentejano, precisamente um período de forte contra-ofensiva dos ex-latifundiários e respectivos governos contra a Reforma Agrária e a administração colectiva dos trabalhadores:
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«Foi a prolongada desocupação da herdade da Lobata, em Serpa, ainda em Novembro de 1976; foram os brutais espancamentos realizados na UCP S. Bartolomeu do Outeiro, em Portel, em 28 de Outubro de 1978; o cerco e a prática ocupação de Pias, no concelho de Serpa, em Julho de 1979, com mais de uma centena de pessoas espancadas e perseguidas ao longo das ruas; foi a utilização de balas de borracha maciça na UCP Fonte Boa da Vinha, em Évora, em Julho de 1979; foi o fogo aberto contra os trabalhadores na Cooperativa de Casebres em Agosto seguinte, que atingiram inclusive os ocupantes da carrinha que se deslocava para o Hospital Distrital de Évora transportando os feridos desta operação; foi a brutal entrega de reservas na herdade das Testas, na UCP 6 de Agosto em São Pedro da Gafanhoeira, Arraiolos, com um aparato nunca visto de metralhadoras, cavalos e cães e de que também resultaram vários feridos e presos; foi, em Julho de 1980, o tiroteio desencadeado contra os trabalhadores presentes na entrega de uma reserva na UCP Estrela da Manhã, em Vendas Novas; prisões arbitrárias e sem qualquer mandato judicial de alguns dos dirigentes mais destacados dos Sindicatos dos Trabalhadores Agrícolas, dos Secretariados das UCP/Cooperativas Agrícolas e dos dirigentes destas, atraídos ou levados sob coacção aos postos da GNR, onde durante horas eram alvo de autênticos sequestros e, em muitos casos, espancados» (Carvalho, 2004, p.84-85);
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Ao mesmo tempo, foi nesta altura que ocorreu
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«O assassinato de dois trabalhadores da Reforma Agrária, António Casquinha e José Geraldo, o primeiro dos quais tinha somente 17 anos de idade e o segundo 57 anos, sucedeu em 27 de Setembro de 1979, em pleno Governo dirigido por Maria de Lurdes Pintassilgo, na herdade Vale de Nobre na UCP Bento Gonçalves em Montemor-o-Novo (…). Consumada a entrega do monte, a força da GNR destacada para a operação, em conjunto com os técnicos do Ministério da Agricultura e com grupos de agrários armados, apoderaram-se de múltiplas cabeças de gado bovino, propriedade dos trabalhadores. Junto o rebanho, deslocaram-se para o monte que tinha acabado de ser entregue, onde enfrentaram o legítimo protesto dos trabalhadores. Nesse momento vários tiros foram disparados por alguém do único grupo que possuía armas, GNR e agrários. Resultado: dois trabalhadores cairiam por terra para não mais se levantarem, perante a insensibilidade e as ameaças de repetição proferidas pelos comandos da GNR presentes. Até hoje nunca foram apuradas as responsabilidades materiais e directas destas mortes» (idem, p.87).
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As razões e motivações para esta sucessão de acontecimentos contra a Reforma Agrária devem-se ao facto de que as classes dominantes não podiam aceitar que os trabalhadores assumissem com êxito a gestão e produção de cinco centenas de modernas empresas agrícolas que eram as UCP’s.
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Portanto, é neste quadro histórico que surge a obra Levantado do Chão de José Saramago. Até às duas machadadas finais na Reforma Agrária – as revisões constitucionais de 1982 e de 1989 – o seu potencial de viabilidade económica ainda era real. Assim, Levantado do Chão é uma obra estética de elevado valor mas com uma componente militante rara, expressa num comovente incentivo do autor aos trabalhadores alentejanos para que prosseguissem com a sua luta.
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O painel de elementos sociais presentes em Levantado do Chão é notavelmente profícuo, com particular incidência no inventariar dos efeitos mais perversos da forma de organização da produção nos campos do Sul de Portugal durante a Primeira República e, sobretudo, durante o fascismo.
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a) A cumplicidade entre a polícia e os patrões,
«diz o sargento, Por falar em patrão, estou precisado de um bocado de lenha. Diz o feitor, Lá lhe irá uma carrada. Diz o sargento, E umas poucas telhas. Diz o feitor, Não será por causa disso que dormirá ao relento. Diz o sargento, A vida está cara. Diz o feitor, Mando-lhe uns chouriços» (Saramago, 2000, p.38);
b) a miséria que «empoeirava o rosto a esta gente» (idem, p.43) trabalhadora;
c) o trabalho infantil, «mas esta criança, palavra só por comodidade usada, pois no latifúndio não se ordenam assim as populações em modo de prever-se e respeitar-se tal categoria, tudo são vivos e basta, (…) esta criança é apenas uma entre milheiros, todas iguais, todas sofredoras, todas ignorantes do mal que fizeram para merecer tal castigo» (idem, p.56);
d) o desemprego e os baixos salários, «vão caravanas pelos caminhos à procura de um salário miserável» (idem, p.56);
e) o desprezo pelos indivíduos das classes populares, vistos como sub-humanos,
«o povo fez-se para viver sujo e esfomeado. Um povo que se lava é um povo que não trabalha, talvez nas cidades, enfim, não digo que não, mas aqui, no latifúndio, vai contratado por três ou quatro semanas para longe de casa, e meses até, e é ponto de honra e de homem que durante todo o tempo do contrato se não lave nem cara nem mãos, nem a barba se corte (…). É preciso que este bicho da terra seja bicho mesmo, que de manhã some a remela da noite à remela das noites, que o sujo das mãos, da cara, dos sovacos, das virilhas, dos pés, do buraco do corpo, seja o halo glorioso do trabalho no latifúndio, é preciso que o homem esteja abaixo do animal, que esse, para se limpar, lambe-se, é preciso que o homem se degrade para que não se respeite a si próprio nem aos seus próximos» (idem, p.73) [itálicos nossos];
f) as desigualdades sociais gritantes logo a partir da mais tenra idade e o fatalismo inscrito na condição social de pertença dos indivíduos, «aí está esse infinito estendal de sexos abertos, dilatados, vulcânicos, por onde rompem sujos de sangue e mucos os novos homens e as novas mulheres, tão iguaizinhos naquela miséria, tão diferentes logo nesse minuto, consoante os braços que os recebem, os bafos que os aquecem, as roupas que os envolvem» (idem, p.294) [itálicos nossos]. Estas são algumas exemplificações do vendaval de fenómenos que pintam a paisagem alentejana do período histórico anterior a 1974, com particular incidência nas circunstâncias em que o operariado agrícola vivia no decurso do regime fascista.
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Conquanto estes sejam indicadores com um elevado interesse sociológico, do nosso ponto de vista, o elemento de maior valor substantivo no romance aqui em mãos prende-se com o processo de formação da classe trabalhadora (Thompson, 1991). Evidentemente, Saramago não desenvolve nenhuma teoria nem sistematiza cientificamente dados empíricos e proposições analíticas. Tal não é o seu objectivo nem a criação artística propugna esse tipo de exercícios e operações. Assim, a riqueza de uma obra de arte avalia-se não apenas pela inovação formal – no caso a escrita fluente e poderosamente confluente de múltiplas vozes de Saramago – mas também pelos implícitos qualitativos e pelas marcas da sociedade que nela se plasmam. Em Levantado do Chão, como nó de (inter)mediação entre a linha histórica de longa duração da vida do latifúndio e a vida pessoal e colectiva da família Mau-Tempo, surge o já referido processo de formação da classe trabalhadora.
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Nas suas linhas mestras, uma classe social é um «fenómeno histórico, unificando um número de eventos distintos e aparentemente desconexos» (Thompson, 1991, p.8) em que nunca é vista como algo «definitivo, definido e como um facto consumado» (idem, p.937). Por conseguinte, uma classe é a corporização colectiva de práticas sociais, económicas, culturais e políticas e que é apreendida sob uma perspectiva relacional, ou seja, uma classe social não age de forma isolada mas em relação às dinâmicas e interesses objectivos e subjectivos das outras classes.
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Com efeito, o desenvolvimento histórico de uma classe social, em Levantado do Chão a classe trabalhadora, é uma constante, se bem que evolua a velocidades e ritmos heterogéneos, apesar das diferentes formas em que esta se manifesta na luta (económica, política e ideológica) de classes. De referir que a evolução política e ideológica de uma classe social, ainda mais quando estamos a tratar de classes dominadas, não é evolucionista. Se uma classe tem limites mínimos e limites máximos – gizados e ajustados pelas estruturas económica, política e ideológica/cultural que as enquadram e envolvem – para o desenvolvimento e maturação da sua consciência de classe, de formas de organização política e social, de bandeiras de luta, etc., a passagem entre esses vários níveis nunca é inelutável nem apriorística, mas releva sempre dos resultados políticos, sociais e económicos da conjuntura em que as várias classes se relacionam e confrontam.
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Começando pelo início, passe a redundância, encontramos Domingos Mau-Tempo, um operário/artesão que deambula e vagueia com a sua família de aldeia em aldeia no concelho de Montemor-o-Novo em busca de emprego. As formas que Domingos Mau-Tempo encontra para se “revoltar” com o “estado de coisas”, com a miséria, a fome e o desemprego reinantes são a bebida, as fugas persistentes de casa e da família para outras aldeias vizinhas e, no fim, no limite do desespero, o suicídio. Reportando-se aos anos 10-30 do século XX, fica-se com a ideia que a significação subjectiva dominante que os trabalhadores de então tinham da pobreza e da condição social em que viviam era de resignação e aceitação de uma ordem ou desígnio (quase) divino e inexplicável. «Também está [o filho] à mão direita do Pai, decerto em boa conversa com Domingos Mau-Tempo, a tentarem saber os dois porque é a desgraça tanta e o prémio tão pequeno» (Saramago, 2000, p.53). Nesta fase, a modalidade mais “avançada” de luta dos trabalhadores alentejanos espelhava-se na figura do maltês, portanto, pequenos bandos de operários desempregados que assaltavam na estrada e depois entregavam parte da colecta pelos trabalhadores mais pobres. Sobrevêm aqui semelhanças com os “bandidos sociais” descritos por Hobsbawm na sua obra Primitive Rebels (Hobsbawm, 1965). As lutas colectivas e espontâneas de trabalhadores alentejanos já ocorriam no tempo da Primeira República e no início do fascismo. Ao mesmo tempo, existiam formas de luta de indivíduos que isoladamente enfrentavam o poder dominante dos latifundiários. Relembre-se o caso de António Dias Matos (1890-1932), assassinado no Cantinho da Ribeira, concelho de Beja. Para mais informações sugere-se a leitura de (Lima, 2006, p.85-102; 133-145) e o posfácio de Manuel da Fonseca ao seu romance Seara de Vento (Fonseca, 2001, p.175-212). Portanto, a análise do processo de formação da classe trabalhadora em Levantado do Chão refere-se apenas ao sucedido no romance, logo sem extensões à restante realidade histórica alentejana.
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Sobre um desses malteses, José Gato, «nunca roubou nada aos pobres, a orientação dele era só roubar onde o havia, aos ricos» (Saramago, 2000, p.133).
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Deste estado em que o desespero, a inacção e a desorientação e onde a acção de grupos dispersos e sem objectivos políticos de luta (os malteses) eram as notas dominantes, passa-se para uma fase de crescente revolta e consciencialização dos trabalhadores. Primeiro, a acumulação de castigos físicos e de humilhações atinge um grau quase insuportável, aliado ao agravamento das dificuldades para se garantir emprego e um salário que permita a sobrevivência económica. Pavimentam-se aí os germes da revolta, até ver individual, dos operários. Aqui surge João Mau-Tempo, filho mais velho de Domingos Mau-Tempo e de Sara Conceição que «um dia, moído de pancada e de trabalho excessivo, desafiou a ameaça de ser esfolado e desossado [pelo capataz], e abriu-se com a mãe estupefacta» (idem, p.55). A insatisfação com a sua condição é cada vez mais visível – «tu és um homem, és o parceiro enganado de uma grande batota universal, brinca, que mais queres, o salário não dá para comer» (idem, p.76). O questionamento da sua situação e a verbalização (o que implica uma reflexão) da mesma, demonstra a passagem para um degrau superior de consciencialização social. Todavia, não há aqui ainda luta colectiva organizada. No romance, o atingir de um novo patamar surgirá durante e no final da Segunda Guerra Mundial. É neste período que uma onda popular de exigência de democratização percorre o país. Também é neste momento que o Partido Comunista Português se torna a força política hegemónica nos campos alentejanos. Nos anos posteriores à derrota do nazi-fascismo na Segunda Guerra ocorre também um ligeiro incremento na industrialização no país.
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A aplicação de maquinaria à produção agrícola resultaria, nas condições de um capitalismo atrasado, de um lado, na expulsão de mais operários do trabalho agrícola, elevando assim a taxa de desemprego nos campos e, de outro lado, na imposição de ritmos de trabalho (quase) insuportáveis.
«Vai o moço para a moinha, recebe-a na cara como um castigo, e o corpo começa de mansinho a protestar, para não mais lhe sobram as forças, mas depois, só não o sabe quem isto não tenha vivido, o desespero alimenta-se da extenuação do corpo, torna-se forte e a sua força regressa violenta ao corpo, e então, de dois feito, o rapaz, que se chama Manuel Espada, deixa a moinha, chama os companheiro e diz, Vou-me embora, que isto não é trabalhar, é morrer» (idem, p.101).
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Temos aqui um primeiro exemplo de greve espontânea. As consequências para os trabalhadores não tardam em chegar, «no domingo foram os quatro [grevistas] à praça e não arranjaram patrão. E no outro, e no outro também. O latifúndio tem boa memória e fácil comunicação, nada lhe escapa, vai passando palavra, e só quando muito bem lhe parecer dará o feito por perdoado, mas esquecido nunca» (idem, p.107-108).
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Esta espontaneidade tende a ser superada pela difusão de reuniões de trabalhadores, «encontram-se aos três e aos quatro em sítios escondidos, e mantêm grandes conversações. Fala sempre um de cada vez e todos os mais ouvem. E quando acabam dispersam-se na paisagem, quando possa ser por caminhos desviados, levando papéis e decisões. A tudo isto chamam organização» (idem, p.120-121) – e conjuntamente com a forte presença de uma cultura popular baseada em ideias de solidariedade e unidade supra-individuais, forjam-se laços de identificação colectiva de classe.
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Resumindo, a existência de uma liderança política revolucionária e ligada aos interesses dos trabalhadores (o PCP), o carácter colectivo da cultura popular e a ruptura com a inércia e o conformismo contribuem para que a classe trabalhadora se constitua como uma classe com interesses assumidamente tomados como distintos e opostos aos das classes dominantes. Em paralelo, a burguesia, os capatazes e a polícia respondem com o aumento da exploração e o recrudescimento da repressão. Contudo, esta reacção, não no imediato mas a prazo, tem como contra-resposta o fortalecimento da unidade dos trabalhadores e permite que estes compreendam e identifiquem mais objectivamente quem são os seus antagonistas e de onde vem a causa da sua condição de classe. A reacção das classes dominantes passa a ser um factor de politização da classe trabalhadora, na medida em que esta já tinha atingido um estádio de desenvolvimento político, ideológico e organizativo – que a não ser destruído pela violência física – se fortalecia no médio-longo prazo. Ou seja, o fosso entre universos (crescentemente) distintos – entre o mundo das vivências, das visões do mundo, das percepções dos vários grupos e classes sociais, das identidades colectivas, das práticas políticas dos operários agrícolas e das classes dominantes – era de uma tal magnitude, que apenas uma recomposição completa da estrutura económica da produção agrícola ou uma repressão que pudesse desarticular completamente a organização política da classe trabalhadora poderia eventualmente ter revertido tal processo. Sustente-se, todavia, que a prossecução deste processo repressivo exigiria uma intervenção do Estado incompatível com as suas forças e recursos de então. Em paralelo, uma recomposição da estrutura produtiva do latifúndio era igualmente incompatível com os interesses de classe de uma das fracções de classe politicamente mais poderosas e mais influentes do bloco no poder que se condensava no Estado fascista: o grande capital agrário e latifundiário. Por conseguinte, a tendência mais provável de desenvolvimento da luta de classes nos campos passaria pelo aprofundamento do antagonismo classista.
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Pelo seguinte trecho visualizam-se as características que sustentavam o estado de desenvolvimento da classe trabalhadora naquele período (a solidariedade , a identificação dos “patrões” como uma classe antagónica, de onde percebiam a migração dos frutos do seu trabalho para o lado da outra classe):
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«Camaradas, não se deixem enganar, é preciso que haja união entre os trabalhadores, não queremos ser explorados, aquilo que pedimos nem sequer chegava para encher a cova dum dente ao patrão. E avança o Manuel Espada, Nós não podemos ser menos que os camaradas das outras terras, que a esta hora reclamam um salário mais certo. E há um Carlos, outro Manuel, um Afonso, um Damião, um custódio, e um Diogo, e também um Filipe, todos a dizerem o mesmo, a repetir as palavras que acabaram de ouvir, só a repeti-las porque ainda não tiveram tempo de inventar outras suas próprias, e agora adianta-se João Mau-Tempo, (…) juntemo-nos todos para exigir o nosso salário, porque já vai sendo tempo de termos voz para dizer o valor do trabalho que fazemos, não podem ser sempre os patrões a resolver o que nos pagam» (idem, p.144).
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«Não há justiça se uns têm tudo e os outros nada, e eu só queria dizer que têm tudo e os outros nada, e eu só queria dizer que os camaradas podem contar comigo, é só isto e nada mais» (idem, p.212).
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Em Levantado do Chão saliente-se ainda que a existência de luta organizada, correlativa da elevação dos níveis de consciencialização dos trabalhadores aparece como o maior receio da classe dominante. Registe-se o seguinte diálogo entre o pároco e a esposa de um latifundiário «é o pior defeito que têm, o orgulho, Tem razão, senhor padre Agamedes, e o orgulho é um pecado mortal, O pior de todos, senhora dona Clemência, porque é ele que levanta o homem contra o seu patrão e o seu deus» (idem, p.243) [itálicos nossos]. O “orgulho” mencionado mais não é do que a assunção individual e colectiva que os trabalhadores adquirem da sua situação na sociedade e da aspiração e necessidade que encontram para se constituírem como uma classe politicamente independente dos interesses económicos, políticos e ideológico-culturais de outras classe sociais.
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Por outro lado, um factor que ao mesmo tempo contribui para incrementar a consciência de classe e que com a maturação desta se eleva a novos níveis é a luta colectiva operária. Isto é, a compreensão subjectiva da classe operária como uma classe diferente, oposta e antagónica ao grande capital (agrário, industrial, financeiro) espelha-se igualmente na extensão da luta reivindicativa no tempo. Portanto, a persistência temporal da luta, com avanços e recuos, em torno de exigências económicas e/ou políticas, é um aspecto capital na evolução qualitativa da formação da classe trabalhadora. Em paralelo, a compreensão de que a luta numa determinada conjuntura faz parte de um devir histórico, de um todo histórico, é igualmente importante, 
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«a Montemor vamos segunda-feira, reclamar o pão dos filhos e dos pais que os devem criar, Mas isso é o que sempre fizemos, e os resultados, Fizemos, fazemos e faremos, enquanto não puder ser diferente, Canseira que não acaba nunca, Um dia acabará, Quando já estivermos todos mortos e ao de cima vierem os nossos ossos, se houver cães que os desenterrem, Vivos haverá bastantes quando chegar esse dia» (idem, p.308) [itálicos nossos].
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Em simultâneo, a coragem em afrontar um inimigo com recursos – financeiros, militares e ideológicos – muito superiores e em que as suas reivindicações e bandeiras de luta prevalecem à repressão subsequente é uma prova do avanço progressivo da capacidade organizativa e da consciência de classe do proletariado alentejano. A isto acrescente-se também a transformação da luta económica (por salários, por melhores condições de trabalho, por horários de trabalho mais reduzidos, etc.) como catalisador da luta política. A acima referida luta pelas oito horas nos campos em 1962 foi complementada com a assunção do dia Primeiro de Maio como feriado dos trabalhadores em plena ditadura. Daí em diante, o dia da resistência antifascista passou a ser exactamente o dia 1 de Maio. Essas lutas da década de 60 – expressas no romance no envolvimento militante de Sigismundo Canastra, João Mau-Tempo, António Mau-Tempo e Manuel Espada (cunhado de João) – funcionaram, desse modo, como factor de: unidade operária, de confiança e ligação dos trabalhadores à única força política antifascista com implantação nas massas populares aí existente (o PCP); consciencialização e organização política; formação de quadros operários; abaixamento do volume de mais-valia apropriado pela burguesia; rachamento da legitimidade do regime fascista e da própria burguesia como classe dominante.
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Com a Revolução dos Cravos, chegam, entre outros, a liberdade política e a liberdade de manifestação,
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«está aqui escrito que o primeiro de Maio será festejado livremente, é dia feriado em todo o país, E então a guarda, insistem os de boa memória, A guarda desta vez fica a ver-nos passar, quem havia de dizer que uma coisa assim nos viria a acontecer um dia, a guarda quieta e calada enquanto tu gritas viva o primeiro de Maio» (idem, p.355).
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Parafraseando Ary dos Santos, com «as portas que Abril abriu» (Santos, 2004, p.309-330) os trabalhadores alentejanos finalmente consumaram as suas aspirações pela posse e trabalho da terra por si mesmos sem necessidade constrangimentos externos e em que os produtos do trabalho eram apropriados e distribuídos colectivamente.
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«E então num sítio qualquer do latifúndio, a história lembrar-se-á de dizer qual, os trabalhadores ocuparam uma terra. Para terem trabalho, nada mais, cubra-se de lepra a minha mão direita se não é verdade. E depois numa outra herdade os trabalhadores entraram e disseram, Vimos trabalhar. E isto que aconteceu aqui, aconteceu além, é como na Primavera, abre-se um malmequer do campo, e se não vai logo Maria Adelaide colhê-lo, milhares de seus iguais nascem em um dia só, onde estará o primeiro, todos brancos e todos voltados ao sol, é assim o noivado desta terra» (idem, p.361).
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Por conseguinte, é com a Reforma Agrária que o proletariado alentejano atinge o cume da sua capacidade organizativa e da sua consciencialização social e política. Isto para não falar da melhoria material e económica da sua vida quotidiana.
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Atentemos nas palavras de um operário agrícola que viveu esse processo. Palavras enunciadas no mesmo ano em que Levantado do Chão foi publicado.
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«Os trabalhadores alentejanos e ribatejanos nunca pensaram na terra para si e não continuam a pensar na terra para si, nunca foram gananciosos por terem um bocadinho de terra. Isto em falando numa maneira muito alentejana, os trabalhadores o que querem é pôr a terra a produzir para todo o povo português e a terra dos alentejanos e dos ribatejanos é de todo o povo português. Portanto, não queremos de facto um bocadinho de terra cada um, mas queremos de facto que a terra seja posta ao serviço da economia nacional e de todo o povo em geral. Não queremos, de facto, ficar com um bocadinho [de terra], outro ficar com outro, que a terra nos seja posta, como se costuma dizer, em nosso nome. A terra é do nosso país, a terra hoje é de quem volta a trabalhar. Esta é a ideia dos alentejanos, é aquilo que os alentejanos trabalhadores rurais sempre viram da terra» (Arraiolos, 1980, p.209).
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É todo este movimento histórico de transformação das práticas colectivas e políticas de classe do operariado agrícola alentejano que vibra e pulsa nas páginas de Levantado do Chão. Um romance onde se pode afirmar que os trabalhadores não são descritos externamente ao contexto histórico, mas onde a sua experiência histórica e humana é contada pela sua própria voz colectiva. Em 1980, pela voz individual de um dos seus.
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Bibliografia
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* Sociólogo
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