Mais um texto completamente louco
assinado por um tal Antunes Ferreira: Altitude e atitude. Que vai desde o
montanhismo e o alpinismo até ao Peak de Hong Kong e do Zolpidem para
dormir até à sopa Tom Yam, passando pelos ascensores e elevadores de
todos os tamanhos, qualidades e feitios. De fazer vertigens, mesmo para
quem as não tenha. O bicho está cada vez pior e ninguém se
responsabiliza por ele. Nem nos perdidos e achados de uma qualquer transportadora aérea se pode descobrir coisa igual. É um caso absolutamente perdido.
Dão-se alvissaras a quem não o encontrar.
Henrique Antunes Ferreira
LINHASTORTAS
Altitudes e atitudes
Antunes Ferreira
Alpinismo é um montanhismo mais aristocrata. Os praticantes pouco diferem, são as mesmas botas de pitons aguçados nas solas, são os mesmos casacos térmicos, são os mesmos machados-martelos, são os mesmos gorros, são os mesmos óculos de lentes escuras, são as mesmas cordas de nylon, mas são diferentes as encostas para escalar. Enquanto os montanistas conquistam uns picos mais modestos, os alpinistas atingem patamares muito mais elevados e mais íngremes.
A dicotomia é, se calhar, um preciosismo que os conquistadores das altitudes considerarão um verdadeiro pleonasmo vertical com esta comparação. Mas, o escriba desde já exara em declaração formal em papel oficial, ainda que sem assinatura reconhecida por notário, que o mais alto que logrou foi o último andar de um prédio com pretensões a arranha-céus, ali aos Olivais e mesmo assim ficou com tonturas só porque o proprietário, aliás excelente chefe de família lhe propôs ir à varanda. O imóvel tinha oito andares.
Santa Justa? Nem um pé... |
Figueiredo também tinha vertigens, denominação mais elevada pois se tratava de subidas mesmo que de ascensor, e não o escondia a quem quer que fosse. Tudo o que passasse de um terceiro andar a Santos era um perigo a que não se arriscava, por mais garantias de segurança que lhe fossem dadas. Nos elevadores encolhia-se num canto e tentava camaleonar-se com os espelhos que existiam nos mais idosos. No de Santa Justa nunca pusera um pé, muito menos os dois, podia chegar-se lá acima junto ao concento do Carmo por rua, de piso asfaltado, uma beleza e sem tonturas. De táxi, ainda melhor, não fosse a crise e a austeridade concomitante.
De uma vez, quando fora com a mulher a Macau, por ele ter ganho o primeiro prémio de um concurso da associação de trabalhadores de companhias aéreas, excluindo as low cost, passara as passas do rio das Pérolas, que as do Algarve estavam a muitos quilómetros de distância. Para ser o escriba mais consentâneo com a verdade, fora a Zulmira quem tirara a senha miraculosa, já que ela é que contava para o efeito, era contabilista de uma empresa de catering de uma das companhias.
Mulher de uma cana, a cara-metade. Logo na Portela demonstrara que o era. Depois de ultrapassados com distinção o chek-in e a moldura de segurança, apenas chegados à sala de embarque da porta G 19 enfiara-lhe pela boca abaixo dois comprimidos de Zolpidem que o levaram ao sonho antes de a aeronave descolar. Na escala, meio abananado, fora ela ainda que o encaminhara para a nova manga do aeroporto de partida e lhe repetira a dose, já não se recordava ele bem, mas pensava que aumentada pelo menos em cinquenta por cento.
Bons sonhos |
O que quer significar que em Hong Kong fora uma trabalheira para o acordar, bem se tinham esforçado uma assistente de bordo, vulgo hospedeira e um comissário para o levantar da cadeira, até descobrirem que ainda tinha o cinto de segurança que a amantíssima esposa lhe apertara à partida. Depois, no jet-foil para Macau já não havia os problemas das alturas e das correspondentes tremuras e nem um simples Valium lhe fora concedido. A humanidade anda cada vez mais em baixo e quanto a solidariedade nem é bom falar.
No antigo território sob administração, esperava-os um senhor chinês que falava um poltuguês muito alanhado, simpático, de óculos de aros do tipo carapaça de tartaruga, que entre muitos sorrisos (ou solisos) os transportou, em viatura da empresa, ao hotel, que era um mastodonte de quarenta e muitos andares. Na receção foi o cabo dos trabalhos, os primeiros pisos eram restaurantes, ginásios, salas de musculatura, bares, jogos, salões de massagens e outros entretenimentos similares. Jovens simpáticas exibiam os teclados bucais a torto e a direito. E prometiam mais.
A Zulmira, puxando de todo o seu Inglês do curso em DVD daSunset School, explicou que o marido não era dado às alturas e porque torna e porque deixa e rebéubéu pardais ao ninho e, pasme-se, conseguiu que a menina chinesa, ali toda a gente tinha os olhos em bico, curiosa coincidência, lhes arranjasse um quarto no quarto andar precisamente, com vista para a piscina. No ascensor número 6 encontravam-se dois cavalheiros pelo aspeto chineses que prosseguiram depois de o casal ter saído. O que achara mais estranho: não eram amarelos, contrariamente ao que se dizia. Voltou a vê-los, sempre os mesmos e depois disseram-lhe que jogavam às sortes com os botões que se acendiam na cabina… O jogo, sempre o jogo num casino-ascensor.
A instalação revelou-se excelente, a piscina igualmente e as miúdas de biquíni ou menos que a frequentavam eram da mesma qualidade. Três dias, pensão completa, só com o álcool para pagar, caso o encomendassem, obviamente, era o Paraíso à borla. Nessa noite jantaram no segundo andar, em restaurante coreano, se quisessem sentados no chão, de pernas cruzadas, mas ele preferira à mesa, com um pequeno forno no meio do tampo. Não soube o Figueiredo o que comera, mas era a modos de como quem diz, porém não exatamente.
Subindo o Peak em Hong Kong |
No dia seguinte voltaram a Hong Kong tal como o programa previa. Apanharam o elevador e foram ao Peak, mais uns momentos de ansiedade, aquilo era altote, e decidiram dar umas voltas, comprar uns Rolex autênticos e certificados, a Zulmira quase batia as palmas de contente, os relógios eram baratíssimos, o que era para ela, dourado, luzia-lhe no pulso, já não o tirara, outro era para o Figueiredo, aliás Janeca, de João. E uns quantos mais para os filhos, os compadres do Alandroal e outros destinatários, incluindo, naturalmente, o senhor fiscal da ASAE que morava no primeiro andar esquerdo, logo por cima do deles e que era cunhado do Martins dono do Restaurante O Marítimo que nunca fora multado, apesar de dizerem cobras e lagartos da limpeza, do armazém e das casas de banho. Acontece.
Nessa noite, foram degustar comida tailandesa, o restaurante, especializado em peixe e mariscos era no piso menos zero, intermédio entre o rés-do-chão e o primeiro, e as jovens serviam de joelhos, estranho costume, em frente das mesas havia uns pequenos fossos por onde elas se deslocavam, nada que se compare aos do estádio dos lagartos, ele era do Glorioso, não precisavam desses obstáculos lá na catedral, à qual o seu padrinho de casamento, portuense e portista dum carago, chamava capelinha, quem o fornicasse. Mas, as prendas de aniversários e natais e quejandos contavam muito e face ao Sr. Dr. Mendes, chefe de serviços no Ministério das Finanças, tudo se tinha de engolir, até os epítetos anti-benfiquistas.
Tom Yam com todos... |
Veio uma sopa Tom Yam, o menu desta feita apresentava-se também em inglês, além dos gatafunhos banguecoquianos, e a Excelentíssima Esposa traduziu logo que era a sopa tailandesa, a perspicácia e a desenvoltura da Zulmira eram um espanto, tracinho sopa de camarão. A terrina não era exatamente um primor da Vista Alegra, antes semelhava forma para bolos ou pudins, com uma pequena chaminé ao centro.
A primeira colherada foi um desastre; porra!, era picante pra burro, como diria a Mara cabeleireira, importada diretamente de Tamanduá. Nem pensar. Chamaram a empregada e a dedicada consorte foi-lhe dizendo que tinha muita pimenta ou piripiri ou lá o que fosse. A jovem arqueou as sobrancelhas e não percebeu patavina. E a Zulmira, iu, misse, mademuázele, andersetande? Não andersetia. E foi um senhor, aliás muito bem-posto, de uma mesa ao lado que explicou à servidora o cerne da questão. Sorriso recatado e gentil, ela levou os pratos.
O excelso cavalheiro apresentou-se, ainda que não tivesse feito o mesmo em relação à dama que o acompanhava, mulheraça de perna cheia e decote até aos joelhos que, por acaso nem tinha ar de que fosse casada com ele, mas, para o caso não interessava. Para outros casos e outras ocasiões, fora do radar zulmiresco, haveria de interessar, mas, assim, nestes preparos, Janeca apenas podia apreciar a coxa dela tostadinha através de racha estratégica na saia. Se ela usasse sutiã, nem lhe teria sabido a marca, mas na verdade não trazia qualquer apêndice nas glândulas mamárias.
Tailandeso... |
Era engenheiro de maquinaria pesada, o Figueiredo logo pensou que a acompanhante garbosa era mesmo da pesada, tinha o gabinete em São Pedro do Estoril, viera a um congresso e estava tudo explicado. Não, tudo não, a rapariga que os servia era um raparigo. Espanto, mas não parecia nada, elas e eles são pequeninos, jeitosinhos, informou o senhor engenheiro, mas aquele era mesmo um sucedâneo de macho, ressalvadas as aparências. E sempre acrescentou que as hospedeiras do avião da Thay podiam se perfeitamente hospedeiros transexuais. Ffffff, bufou o Figueiredo para quem homem era homem, mulher era mulher e ponto. E a Zulmira, vê lá o que dizes, esta gente pode entender os palavrões portugueses, modera-te. Ele apenas bufara, de desprezo, ficou-se pelo fffff.
No fim de uns pratos muito mais suaves, sófetes no dizer do da pesada, sobremesa, chá e uísque, oferta dele, uma noite daquelas era para recordar e comemorar; deixou-lhes o número do telemóvel de Portugal, despediu-se e seguiu maila acompanhante e ondulante. A Zulmira não se conteve, olha que ela é calmeirona, tu não te dás bem com as alturas, ao que ele não replicou, não parecia bem dar uma de peixeirada num restaurante – ainda que de peixe – tailandês em Macau.
Quando regressaram a Lisboa, a receita dos aero-soníferos q.b. surtiu uma vez mais o efeito desejado. Não devia haver alpinista, nem sequer montanhista, seja relevada ao escriba a falta de exatidão no concernente à terminologia, que tivessem, sequer, tentado resistir ao tratamento. Nestes casos que se prendem com as escaladas, o calado é o melhor. Ou seja, altitudes e atitudes.
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