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terça-feira, 1 de maio de 2012

Antunes Ferreira - O pó miraculoso


TERÇA-FEIRA, 1 DE MAIO DE 2012

DICA SIM, DIA NÃO

O pó miraculoso

Antunes Ferreira
Desce na estação do Campo Pequeno, o metro vinha cheio, olha que novidade, anda sempre, só faltam os funcionários que em Tóquio empurram à patada os passageiros que não conseguem embarcar. Aparentemente, os japoneses nem se queixam, de tão habituados ao tratamento, quiçá mesmo agradeçam pois assim não perdem a viagem, ainda que sigam enlatados, como as sardinhas, melhor do que entalados como o Martim Moniz.

Sobe as escadas, e enfrenta a rua com a animosidade de quem vem de uns 35º Celsius e apanha com uma chuva picuinhas fria. Na praia de Colva, antes com acento agudo no a final, a água do Índico ostentava uns gloriosos 28, roçando mesmo os 29. Centígrados como antes se dizia, e, apesar das recomendações para o correto ser o apelido do físico Sueco, ainda hoje se diz. Oceano que une a costa do Malabar à africana oriental, brinda quem nele se banha, por tais latitudes e que, de tanta gente, mais parece um caldo de carne. Sem intenções canibalescas, no caso presente, humana.

Agora e aqui, ainda por cima não traz o chapéu-de-chuva, fruto do desábito. Por lá, muitas senhoras usam instrumento igual, mas de sol, para que o astro não lhes creste mais a epiderme já de si morena. Arrisca-se a apanhar uma constipação, quem sabe até uma gripe ou, lagarto, lagarto, lagarto, uma pneumonia. Fora o caso da esposa amantíssima mas pessimistíssima, poderia mesmo chegar a uma bronco quiçá dupla. Pelo sim, pelo não, acoita-se a portal mais abonado, de prédio vigoroso, robusto, por certo de companhia de seguros. Não resiste ao trocadilho: este último, no singular, morreu de velho. Para não falar no político… E ri-se.

Quem o veja presumirá que deve usar auricular, por intermédio do qual lhe estão a contar uma anedota, talvez até maliciosa; por isso, arreganha a cepa, o que levará o adivinho a acreditar que o chiste será pornográfico, daqueles que no antigamente apenas se contavam a cavalheiros, mas hoje também a damas, assim às escâncaras. E vem-lhe à mente, de imediato, obluetooth, palavra que está na moda, mas cujo significado ele não sabe muito bem qual é, os netos é que a usam à mistura com um tal wireless.

Um sol tímido deita a língua de fora, por entre as nuvens acasteladas e cinzento escuras, ele sai do abrigo, na parede do prédio há umas quantas placas de consultórios médicos, de cabeleireiras, escritórios de Informática, mas não há nenhuma de seguradora que se preze, donde, enganou-se, o que se desculpa, pois não se considera nenhuma pitonisa.

Isto de impostos...
O Bairro Fiscal fica mais à frente, é para lá que se dirige, quer estar certo de que é o antepenúltimo dia para entregar o modelo qualquer coisa, do IRS, é cumpridor dos seus deveres desde os maritais aos fiscais, passando pela segurança social e pelas regras de civismo. Já quanto aos religiosos é melhor não reviver velhas questões, uma pessoa abandona o redil, descobre que não sente a falta dele, habitua-se a ouvir dizer que há sempre o momento em que as gentes caem em si e reconsideram; sobretudo lá pelas Goas – ele garante que há diversas e um tanto contraditórias – onde os católicos são mesmo católicos. Acaba de voltar de uma estada de vários meses, mais precisamente de princípios de outubro a finais de abril e precisa de colecionar os elementos que de lá enviou pelo correio que por avião sairia muito caro.

Ora Goa e outras Índias têm vida barata. Os salários são pequenos, os sindicatos deitam os corninhos de fora, como o caracol, mas ainda estão numa fase de apalpação dos poderes instituídos. Os preços também são diminutos, ainda que os haja upa, upa. Ele tentou perceber o que aconteceu nas eleições estaduais, ganhou um tal Parrikar, amigos explicaram-lhe os mecanismos e chegou à conclusão seguinte: quando conseguir entender o críquete, então conseguirá desvendar o processo eleitoral. Mas terá de partir do princípio de que a Índia é a maior Democracia do Mundo. Mais precisamente, é o maior país do Mundo em que há eleições livres e partidos diversos.

Coisa complicada...
Chega à Repartição das Finanças onde quase se sente como no metropolitano: um mar de gente, uns quantos fulanos sentados, aguardando que os chamem pelos altifalantes, outros em pé, um vozear muito para além dos decibéis mais aconselháveis, calem-se que assim não se ouve a chamada, cale-se você que isto não é o-da-joana, quem és tu para mandar, dar ordens, ameaçar, já basta o que basta para andarmos calados, terra de bananas. Tira a senha de chamada.

Nos balcões a velocidade no atendimento não é, de forma nenhuma,… veloz. Os requerentes começam por dizer desculpe-me estar a chateá-lo, mais frequentemente la, que a maioria dos funcionários é do sexo feminino, mas eu vinha pedir-lhe que me explicasse como é que, ó homem de Deus, está aí tudo escarrapachado no impresso, é só ler e proceder de acordo. Está instalado o sarilho. O senhor não devia ter pedido escusa inicial, o agente do Estado está ali para o atender, não faz favor nenhum, pagam-lhe para isso, o comentário é de uma senhora bojuda, qual boião de geleia real importada da China. A geleia, não a briosa cidadã.

Isto dá mais que tempo, vou lá fora comprar o jornal, diz ele para ele próprio. Porém voltou a chover e entre uma outra molha e o periódico, fica-se pela confusão do Fisco. E, de repente, sente-se em pleno mercado de Mapusa – tem piada, no tempo dos Portugueses era Mapuçá – que às sextas-feiras tem edição especial e ampliada, com os feirantes a multiplicarem-se quais pães e peixes miraculados.
... para limpar metais

A cena era extraordinária. Ele seguia a esposa que procurava - no meio daquela amálgama de gente, barracas, lojas, motos, vacas, motorizadas, fruta, riquexós, especiarias, scooters, pedintes, donas de casa, bicicletas, vendedores - um pó para limpar metais que lhe fora solicitado em Lisboa por pessoa amiga. De acordo com esta era um produto extraordinário que faz brilhar tudo, porém pensava ele que esse tudo não incluiria parafusos ou pregos, alumínios, ferros fundidos, ainda que estes fossem metálicos.  

E, de repente, uma senhora de sari colorido, mas com pouco ou quase nada de indiana, dirigira-se-lhes num português de acento inconfundível, sorriso amplo afixado na face, que era alentejana mas que vivia em Goa há mais de trinta anos, casada com um médico goês, que conhecera lá pelas nossas bandas, a quem dera filhos e até que, fora com ele a Timor por mor do serviço militar obrigatório. Um dia, haviam decidido sair de férias, tinham casa de família em Margão, ela, que nunca viera, a princípio franziu o cenho, cheirava mal o lixo que se acumulava por ruas e becos e travessas, depois habituou-se, achou que se estava bem, instalou-se, seja, instalaram-se.
Quantas especiarias 

Encontro providencial, já que a Senhora Dona Juliana conhecia perfeitamente o famoso ingrediente, havia um estaminé ali mais à frente, depois da «Loja da Luisinha», onde se podia adquiri-lo, ela ia lá com eles e, num ápice, tornaram-se possuidores de dez pacotes de 150 gramas cada um, cinco seriam para os amigos que o tinham pedido, com os outros cinco ficariam eles, face à garantia dada pela natural de Borba.

Está nisto quando por entre a densidade sonora da sala da Repartição de Finanças, ouve, nitidamente, a chamada do seu número, o 167, balcão B. Com licença, desculpe lá, fura a multidão, bom dia, e inquire a funcionária que do outro lado exibe um ar meio sofredor, meio chateado, se pode entregar aqui a declaração do IRS, é reformado, não percebe muito disso, o filho que lhe tratava dessas coisas estava desempregado e a conselho do primeiro-ministro emigrou para Angola, deixou-lhe a mulher e os dois netos.

O olhar carregado da senhora abranda, não é normal dizerem-me bom dia, gostei, mas, infelizmente, tem de fazer a declaração pela Internet, já não há papelada, está tudo no computador. Muito obrigado, mas ele não percebe nada de tais maquinetas, olhe, vá à sua junta de freguesia, lá eles ajudam, basta levar os documentos da receita e da despesa. Desanimado, aceita, despede-se com um muito obrigado e um resto de dia o melhor possível. O seu nome é Silva, João Rodrigues Silva, eletricista aposentado, se ela precisar de alguma coisa tem ali o número de telefone dele.
No final do dia a senhora vai preencher-lhe a declaração

Já se preparapara sair, levanta a gola do casaco, continua a chover, raio de tempo, Abril, águas mil, mas tanto não, quando ouve o seu nome. Volta-se, é a funcionária do balcão, ó senhor Silva chegue cá, se faz favor. Chega-se, e em voz baixa para os outros fregueses não ouvirem, a senhora diz-lhe para passar por lá no final do dia de trabalho, ela vai preencher-lhe a declaração e não se esqueça traga os recibos da farmácia e das consultas e as declarações de rendimentos. Dele e da esposa.

Um bom dia e um sorriso fizeram mais do que uma novena a Santa Filomena que, ao que parece, já foi desclassificada, já não consta da lista dos abençoados, mas que, mesmo assim ainda dá jeito invoca-la. Se fosse em Goa, o Deu boro dis diumtambém ajudaria, por certo, a resolver uma qualquer questão. E, obviamente, o sorriso, coisa que não falta por lá. Parara de chover, aproveita a aberta e entra na estação do Campo Pequeno.

Ali não há bom dia que valha. A lei da selva impera, conquistar um lugar na carruagem é uma forma de fintar a crise, pese embora o aumento dos preços dos bilhetes e dos passes e dessas traquitanas todas, As pessoas andam com ar fechado, preocupado, vencido. Pudera, não, com a vida como está, nem a ex- santa lhes vale. E se seguisse o caminho da Dona Juliana, mesmo sem ser alentejano? Nem de propósito, tinha de telefonar aos Mendes para os informar que tinha trazido o pó miraculoso.

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NE - O corrector automático está a levar-me a adoptar o novo Acordo. Como concordo com o documento, acho uma excelente ideia. Assim, safo-me

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