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domingo, 6 de maio de 2012

Antunes Ferreira - Cacilheiros do Tejo

.« No entanto, uma variável não mudou: na outra margem do Tejo continua a estar Almada, continua a estátua do Cristo Rei, cresceram os prédios de forma espantosa, as urbanizações foram perfeitamente ilegais, mas persiste em ser a Outra Banda. Para onde se atravessava nos cacilheiros, hoje ferry-boats e catamarans, porque atracavam em Cacilhas, onde se ia comer berbigão temperado com limão e coentros, para os mais remediados, e ameijoas à Bulhão Pato e camarão cozido, para quem tinha posses para essas gastronomias que incluíam ainda o mexilhão e as sardinhas assadas com batatas e salada de pimentos. Para não falar nas lagostas e nas santolas e nas ostras que, essas, só para a gente da alta. »
Henrique Antunes Ferreira

VIDAVIVIDA

Cacilheiros 
do Tejo
Na outra margem do Mandovi,
em frente a Pangim, está Porvorim,
antiga aldeia minúscula, que agora é a sede do Poder
político, com instalações próprias construídas
 para o efeito, entre as quais a Assembleia
 do Estado, edifício muito bem
 concebido, elegante e funcional

Antunes Ferreira
Do outro lado do rio fica Amada, fica o Cristo Rei que a encima. Da janela das traseiras do meu maxi-apartamento na Travessa do Ferreiro à Lapa, e tal como reza o desenho do meu primogénito Miguel no cabeçalho desta Travessa que é do Ferreira, via-se tudo, incluindo a ponte 25 de Abril, que já foi Salazar, mas que desde foi construída sempre era a Ponte Sobre o Tejo, ainda que houvesse mais umas quantas a montante. Mas, nada de especial. Esta era a verdadeira, a real, ainda não se falava em virtuais. As outras eram… peanuts, ou seja amendoins, pouca coisa.

Agora, aqui a caminho do Lumiar, deste que não é mini, mas é metade do outro, que tinha 336 metros quadrados, vê-se uma nesga do estádio mais lindo do Mundo, ou seja o Alvalade Século XXI, Estou muito satisfeito com a mudança – o velhote andar metia água por tudo o que era sítio, chegámos a ter entre baldes, bacias e tijelas de plástico, panelas, tachos e afins, 34 exemplares a apanhar a chuva que entrava por ali como se fora por coador de malha larga. Muito aguentámos dentro das paredes setecentistas. Mas, fizemos bem. A mudança foi excelente.

Na outra margem, continua o Cristo Rei
No entanto, uma variável não mudou: na outra margem do Tejo continua a estar Almada, continua a estátua do Cristo Rei, cresceram os prédios de forma espantosa, as urbanizações foram perfeitamente ilegais, mas persiste em ser a Outra Banda. Para onde se atravessava nos cacilheiros, hoje ferry-boats e catamarans, porque atracavam em Cacilhas, onde se ia comer berbigão temperado com limão e coentros, para os mais remediados, e ameijoas à Bulhão Pato e camarão cozido, para quem tinha posses para essas gastronomias que incluíam ainda o mexilhão e as sardinhas assadas com batatas e salada de pimentos. Para não falar nas lagostas e nas santolas e nas ostras que, essas, só para a gente da alta.

Pela estrada velha (hoje substituída por uma autoestrada a A2, que levou anos a ser construída às mijinhas até ao Algarve) ia-se a Setúbal manjar uns salmonetes na brasa de comer e chorar por mais. E lambujinhas. E uns bacalhaus assados no carvão com azeite frito com alho e outras vitualhas; comezainas que por vezes eram substituídas sob proposta do chefe de mesa, indiciado pela cozinheira, pelo cozido à portuguesa, ou a carne de porco à alentejana. Pratos de sustância. Mas, sobrevoando todos, a um nível de altitude que rondava o Everest, era a caldeirada à fragateira, feita com água do mar.

Recordo tudo isto com a saudade própria de quem começou nestas andanças aos cinco, seis anos, com os meus pais, irmãos, tios, tias, primos e primas diversas e mesmo um que outro adjacente, mais chamado pendura. Amigos dos adultos e, por vezes, aliás escassas, dos crianços que nós éramos. Não se trata de saudosismo bacoco, nunca fui de tais procedimentos a não ser quando iniciava uma carreira (que se antevia promissora) de fadista, já mesmo na Toca do Carlos Ramos, mas que o pai Henrique Ferreira cortou cerce, dando corpo à ordem severa da Dona Glória Ferreira, administradora caseira e arredores da Justiça na base da colher de pau.

Hoje, o santuário do Cristo Rei, restaurado e ampliado em 2002, é mais um ex-libris da outra margem do que desta de cá. Tem um início curioso que o irmana ao Cristo Redentor do Corcovado; ou melhor que o tenta copiar. Em poucas linhas: em 1934, o então cardeal patriarca Gonçalves Cerejeira – quiçá o maior amigo de Oliveira Salazar – em visita ao Rio de Janeiro depara-se com o monumento e logo decide que Lisboa terá um igual. Seguem-se inúmeras diligências, as duas guerras mundiais tinham originado os desastres consecutivos da Velha Europa. O Plano Marshall foi a alavanca da reconstrução de um continente mendicante.

Em Portugal, as peripécias sucedem-se, consolidando a ditadura salazarenta, e os bispos nacionais aprovam a construção do émulo lisboeta do Corcovado. Que, veja-se, seria construído em frente da capital. Coletas públicas, mesmo entre as crianças das escolas, foram fazendo avançar as obras. Conta-se até um episódio caricato que se diz ser verdadeiro. Quem sabe? O eclesiástico tesoureiro das ofertas terá fugido com o dinheiro para o Brasil. E como quem conta acrescenta um ponto, ali terá morrido num desastre de automóvel com duas mulatas a bordo… Não garanto.

Certo é que em 1959, por entre ventos e marés, o Cristo Rei de Almada é solenemente inaugurado; a Ponte Sobre o Tejo só será concluída em 1966. Entre os dois situa-se o Padrão dos Descobrimentos, de 1960 e só em 1993 surge o Centro Cultural de Belém, onde já existiam o mosteiro dos Jerónimos, 1516 e a Torre de Belém, de 1520. Este acervo riquíssimo, torna a zona uma das mais, senão mesmo a mais famosa da capital, só emulada pela Baixa lisboeta, obra do Marquês de Pombal, na reconstrução da cidade depois do grande terramoto de 1755, hoje considerado um verdadeiro tsunami.

O Esquimaux... fresquinho
Assisti à inauguração de umas quantas, não sendo, no entanto, suficientemente idoso, para referir a Torre de Belém, os Jerónimos, nem sequer a construção da Baixa. Os calendários, mesmo o gregoriano, pregam destas partidas e não há nada a fazer. Entretanto, recordo-me como se fosse hoje, do primeiro«Esquimaux» (que logo passaria a esquimó fesquinhoooo!) que comi no Jardim Zoológico ali à estrada de Benfica e da Dona Clélia, estimada professora da então quarta classe da instrução primária. Isto porque a Senhora mestra explicou depois queesquimaux eram os homens que comiam carne crua. Nos polos, os fogões deviam ser muito poucos, pensara eu.

Um aparte, um pequeno aditamento, se não se importarem. E se sim, é igual ao litro, escarrapacho-o aqui mesmo. Trata-se dos cacilheiros. Os barcos que de há muito faziam e ainda fazem a travessia do Tejo como atrás disse e com o terminal normal em Cacilhas. Já tiveram melhores dias, mesmo muito melhores, ainda que quotidianamente cruzem o rio nos dois sentidos para trazer e levar milhares e milhares de pessoas, sobretudo as que vivem na margem de lá e trabalham na capital.

Das coisas mais bonitas, no meu modesto entender, que se têm escrito sobre o Tejo, Lisboa e os cacilheiros é o fado criado por José Viana, um ator, pintor, encenador e mais coisas. Um verdadeiro homem dos sete ofícios, bem pode dizer-se. Porque assim o julgo, aqui o transcrevo:
Levei comigo no bote uma varina...

Quando eu era rapazote
levei comigo no bote
uma varina atrevida;
manobrei e gostei dela
e lá me atraquei a ela
p’ró resto da minha vida
Às vezes numa pessoa
a saudade não perdoa
faz bater o coração;
mas tenho grande vaidade
em viver a mocidade
dentro desta geração
Sou marinheiro
deste velho cacilheiro
dedicado companheiro
pequeno berço do povo;
e navegando
a idade vai chegando;
ai... o cabelo branqueando
mas o Tejo é sempre novo
Todos moram numa rua
a que chamam sempre sua
mas eu cá não os invejo;
o meu bairro é sobre as águas
que cantam as suas mágoas
e a minha rua é o Tejo
Certa noite de luar
vinha eu a navegar
e de pé junto da proa
eu vi ou então sonhei
que os braços do Cristo Rei
estavam a abraçar Lisboa…

Toda a panóplia enunciada pertence à banda de cá; à de lá – em Paris seria a Rive Gauche – serve-lhe de pendão o Cristo (copiado) Rei. Até o esquimó fresquinho nascido deste lado só depois, penso, mas não garanto, se terá passado para a outra margem usando um cacilheiro. Havia quem disse que tudo se podia passar a bordo de um deles. Apenas um exemplo, presumo que verdadeiro, dando fé à senhora Ângela, porteira do prédio em que os Ferreiras viviam.

Onde foi feito o Adolfinho
A menina Elvira era a criada lá de casa. Atualmente diz-se empregada doméstica, mas naquele tempo era assim.  A jovem sopeira, outra denominação desaparecida, ainda que a sopa esteja cada vez mais em uso, dada a crise e o correspondente cotão nas algibeiras, tinha um namorado, fatalmente um magala (nome que então se dava a um soldado), o Zeferino, o 2137/49 do Batalhão de Caçadores 5, ali a Campolide. Era o para clássico: o magala e a sopeira. Que, por vezes, iam até ao Ginjal, tasco ali à saída dos barcos em Cacilhas, depois promovido a restaurante, petiscar e beber uns copinhos.

Casaram, saindo a noiva lá da nossa casa, por entre choros de saudades incipientes, desejos de felicidades e uns trocados para o começo de vida, de vestido de noiva confecionado pela menina Manuela, costureira que dava os pontos com ou sem nós no nosso apartamento. Tiro e queda, batizado à vista, igreja de Fátima, registo civil, padrinho o meu Pai, e quando se efetuava a ata correspondente, à pergunta clássica – o menino Adolfo, nascido hoje para a vida eterna, é natural de?  – o Zeferino respondeu, impante: do cacilheiro Senhora da Glória. E a Elvira, cheia de leite materno e um tanto corada, ó homem, isso foi onde o Adolfinho foi feito.

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