Se é dor, então talvez eu tenha morrido antes de ti e deixado de sentir.
Confesso a minha ignorância no que respeita a asas. Perdi a conta aos erros que cometi por não perceber se eram asas de anjos ou traziam em si a artilharia pesada do inferno. Muito a custo percebi que as tuas eram de insecto ou de morcego vampiresco a sugar-me a vida.
Se é saudade eu pergunto de quê. Da vida suspensa em equilíbrio frágil? Do sobressalto do trapézio sem rede em que ela se transformou? O meu coração mais parece um esconderijo com a lotação esgotada, tantos foram os desenganos.
E no entanto, agora nem sei o que sentir. Pedi para ficar só contigo, porque queria saber se ainda estava viva, enquanto tu, nesse caixão, tens a calma solícita de certos mortos. Nada em ti mostra terror ou ansiedade. Nem um ricto de dor te torna humano. E sabes? Não sei se estou, porque não consigo sentir nada. Sou neste momento um corpo amnésico, uma folha em branco.
Entre os sonhos que me galgavam e apressavam o sangue e a existência banal do marido e filhos com passeios dominicais, eu escolhi-te a ti. Mas de normal a vida não foi nada.
Eu queria-te num casamento imaginado à medida de um conto de fadas. Tu envergavas por vezes essa farda para os outros verem, mas fugias de mim sem no entanto me deixares.
Eu inventava paisagens para fugir do terror quotidiano. Nunca me profanavas o corpo, mas dizimavas-me a lucidez e esvaziavas-me de humanidade. Durante anos enchi de lágrimas as paredes da casa e conjuguei todas as tristezas.
E eu amava-te, sabes? Amava-te tanto que suportei todas as traições e humilhações, e todos os desesperos foram sempre trocados pela vertigem dos teus braços e da tua boca.
Como foi possível que a nossa urgência cega tivesse tão rapidamente atingido o ocaso? Mas eu senti-te vida fora alapado a mim, sem no entanto me quereres.
Queria muito estar a derramar lágrimas negras de viúva inconsolável mas todas as fontes secaram em mim. Arrasto comigo um desamor à vida que já nem me inquieta as noites. Que diferença para as noites de outrora em que esperei por ti amarfanhada num canto como um bicho!
Esta agora sou eu, terra lavrada rudemente pelo teu arado. Agora tudo é inevitável e mesmo que me penetre de um modo inconveniente, pouco ou nada me fere. Por isso não sei se estou viva, nem se tudo isto não é apenas um sonho do qual acordarei daqui a pouco.
Mas não quero pensar mais nisso. Já tudo me sorveu a alma e enleou os braços. A minha boca disse o insuportável e rangeu para lá do permitido. Agora quero-a de volta mesmo que não a encha de beijos. Quero o meu corpo mesmo que nele se tenha calado a primavera. Portanto se morri, quero ressuscitar e reivindicar os sonhos. Nada será igual, eu sei. A ingenuidade não volta. Mas vou reiventá-los.
Não me deixaste nada a não ser mágoas e cicatrizes. Estão todas cartografadas dentro de mim, num invejável percurso de muitos anos. Também eu tinha asas mas queimei-as na fome de um aconchego ou de um desejo. Tudo o que restou levas contigo. Dei-te tudo e até as palavras me comeste juntamente com desdém.
O amor pode ser um míssil a esventrar-nos num zénite glorioso, ou uma leve purpurina a soltar-nos o riso e a tornar-nos especiais. Tive uma pequena amostra num jogo fraudulento que eu não podia ganhar. Mas agora acabou.
Se o saldo das lembranças não fosse tão negativo, quem sabe eu não poderia vestir os olhos com alguma amargura?
A ti não devo nada, fiz o melhor que pude e nunca te falhei. Por isso estou aqui.
Esta carta que escrevi, enquanto aqui estamos só os dois, é a última de muitas que se tornaram parte das nuvens que nos escureceram. Vais levá-la contigo para não me perderes como eu te perdi.
Assim, condeno-te a amar-me mesmo que tu não queiras.
PS: Sempre te escrevi cartas de amor. Esta não é excepção.
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