Todos os dias ouvimos os ideólogos do grande capital defender a existência de pretensa semelhança entre o comunismo e o fascismo. Neste texto procuraremos mostrar a verdade. Isto é, como o comunismo nada tem a ver com o fascismo.
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1) Tomar a experiência de construção do socialismo como totalitária equivale a colocar no mesmo plano o comunismo e o fascismo. Ora, este último não só surgiu como uma reacção ao avanço revolucionário do movimento operário e comunista – nomeadamente à Revolução Russa de 1917 – como arregimentou massas em torno do fanatismo e do irracionalismo. Por outro lado, há que ter em conta o enquadramento do fascismo enquanto fenómeno político no seio da estrutura social mais vasta em que aquele se encontra mergulhado, bem como das classes que o alimentam e lhe deram espessura histórica. A esmagadora maioria dos autores anti-comunistas nunca abordam a ligação profunda entre o grande capital e os regimes fascistas. A meu ver, a enunciação desta conexão de classe denuncia a diferença essencial entre o fascismo – enquanto resposta específica do grande capital a um contexto de crise – e o comunismo – enquanto corrente política e ideológica ligada intrinsecamente aos interesses mais profundos dos trabalhadores e dos povos oprimidos. A demonstração da ligação entre o fascismo e o grande capital permite elucidar a origem e a natureza de classe do fascismo colocando-o no seu real terreno de génese.
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Assim, o Estado fascista permitiu, nos contextos em que foi implementado, elevar os níveis de acumulação do capital e reforçar a dominação de classe do grande capital. Em primeiro lugar, na Alemanha nazi o número absoluto de empresas no período de 1933 a 1937, portanto, no momento em que a recuperação económica da Grande Depressão já se tinha iniciado, «diminuiu na ordem dos 9%». Ou seja, das 361866 empresas existentes em 1932, cinco anos depois sobrevivem apenas «31598 unidades produtivas» (Bettelheim, 1971, p.76). Ao mesmo tempo, entre 1936 e 1939 vê-se as sociedades com um capital social superior a 20 milhões de marcos passarem de 18 a 25 e as que tinham entre 5 a 20 milhões de marcos subirem de 92 a 104. Por seu turno, inúmeras sociedades com um capital social com menos de 5 milhões de marcos fecharam, com particular destaque para as pequenas sociedades até 500 marcos, de 500 a 5000 marcos e de 5000 a 20000 marcos que viram falir, respectivamente, 57%, 54% e 55% do seu contingente inicial (idem, p.79). Para Bettelheim, o Estado nazi contribuiu decisivamente para o processo de entrega de inúmeras empresas e bancos com participação do Estado ao grande capital germânico. «Mesmo as empresas municipais foram vendidas ao capital privado, o que permitiu ao capital monopolista reforçar as suas posições, notadamente nas indústrias da electricidade e do gás» (idem, p.129).
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Para Fátima Patriarca, a relação do grande patronato com o regime fascista do Estado Novo foi sempre de concertação e da busca de consensos.
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«Os patrões falam alto e com segurança ao Estado. Se reconhecem – e pedem – que este intervenha numa série de domínios, se aceitam até a sua “superior orientação”, se se mostram dispostos a com ele colaborar no sentido de encontrar soluções para a depressão económica, não deixam também de marcar bem as distâncias, as fronteiras e os limites. Ao Estado cabe tomar medidas que protejam, favoreçam e fomentem a indústria nacional, proceder aos estudos base, criar as infra-estruturas que esta precisa. Mas a intervenção do Estado deve terminar aqui. A actividade produtiva cabe, por inteiro e em exclusivo», assim o desejavam os grandes industriais, «à iniciativa privada» (Patriarca, 1995, p.137).
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A ligação e a intimidade do grande capital com o fascismo português é, aliás, anterior à própria institucionalização do regime do Estado Novo. A 4 de Março de 1932, a Associação Industrial Portuguesa (AIP) endereça uma exposição ao então Ministro das Finanças, Oliveira Salazar, dando nota das posições da confederação patronal sobre a globalidade das medidas governamentais anunciadas pelo Conselho de Ministros em 24 de Fevereiro do mesmo ano. Nessa exposição, o patronato informa que
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«a protecção aduaneira; a possibilidade de estabelecimento de contingentes de importação; a denúncia dos tratados ou convenções de comércio existentes e a celebração de novos quando a protecção pautal se mostre deficiente; o barateamento do crédito; as medidas de incremento a trabalhos públicos para combater o desemprego; a protecção dispensada à cultura do algodão em Angola são tudo medidas que os industriais da AIP aplaudem e qualificam de grande estímulo» (AIP citada em Patriarca, 1995, p.174-175).
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O interesse destas citações de uma autora que não tem nada de marxista evidencia a concertação global de interesses entre o regime fascista do Estado Novo e o grande capital mesmo durante os primeiros anos do regime, período a que se refere o estudo de Patriarca. A autora que temos vindo a citar, tira a seguinte conclusão sobre esta questão:
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«é indubitável que os patrões foram vendo satisfeitas muitas das suas reclamações. Tinham conseguido o saneamento financeiro, com a inerente diminuição das despesas públicas e o rigor orçamental nas contas do Estado. Haviam reivindicado e obtido o condicionamento que limitasse e regulasse a concorrência interna e vão conseguir, depois, a sua melhoria. Tinham reclamado e conseguido as pautas que os protegiam da concorrência externa. Haviam reclamado e obtido dinheiro mais barato, uma tributação mais gravosa (…) e vão conseguir acordos de comércio com países estrangeiros que lhes são mais favoráveis. Tinham batido contra a industrialização das colónias e acabariam por ver o seu ponto de vista consagrado: estas iriam constituir, antes de mais, fonte de matérias-primas e um escoadouro para a produção metropolitana. E, tão importante quanto esta longa lista de benefícios, haviam conseguido o mais desejado dos bens: ordem nas ruas e paz nas empresas» (Patriarca, 1995, p.646).
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No mesmo sentido escreve Álvaro Cunhal:
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«De 1935 a 1939, foram constituídas 95 sociedades anónimas com um capital total de 113505 contos, correspondentes a 27% do capital de todas as sociedades constituídas, e 4743 sociedades por quotas com um capital de 253737 contos correspondentes a 61% desse capital. Em 1955-59, o capital das sociedades anónimas constituídas subiu a mais de 1800000 contos, ou seja, mais do que o dobro do das sociedades por quotas constituídas; enquanto o capital daquelas representou nesses anos 70% do capital de todas as sociedades constituídas, o capital das últimas representou já só 29%» (Cunhal, 1974, p.23).
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Sobre o apoio do Estado Novo aos grandes potentados económicos, ressalve-se, segundo Álvaro Cunhal, «a protecção aduaneira, a isenção de pagamento de direitos de importação de mercadorias necessárias à indústria, isenções de contribuição industrial, redução de impostos sobre a aplicação de capitais, perdão de dívidas ao Estado, dádivas, aval a empréstimos concedidos no estrangeiro, espoliação das Caixas Sindicais de Previdência para os aplicar em acções das grandes companhias, etc.» (Cunhal, 1974, p.36). Na decorrência do processo da concentração e centralização de capitais e com o desenvolvimento das relações capitalistas de produção dá-se a formação do capital financeiro em Portugal sob o guarda-chuva e, ainda mais, sob a própria indução e monitorização inicial do Estado. Isto é, «com a fusão do capital bancário e do capital industrial, com o desenvolvimento das sociedades anónimas, tornou-se possível a situação hoje [em 1965, nota nossa] existente em Portugal: onze grandes grupos monopolistas controlam e dominam as mais importantes sociedades (…) e controlam e dominam os sectores fundamentais da economia portuguesa» (Cunhal, 1974, p.25). Entre esses potentados monopolistas Álvaro Cunhal cita o grupo da CUF, o grupo do Banco Espírito Santo, o grupo Delfim Ferreira e Banco Atlântico, o grupo do Banco Nacional Ultramarino, o grupo Pinto de Azevedo e Banco Borges e Irmão, o grupo Sommer, o grupo C.ª Portugal e Colónias e Banco Lisboa e Açores.
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O agrupamento dos dados recolhidos adquire semelhanças e, em todos os três autores, denotam-se tendências similares: a) reforço do poder dos grandes grupos económicos na esfera da produção e circulação de bens e de capitais; b) concentração de capital[1] e polarização da riqueza.
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2) Num âmbito ideológico, no movimento comunista não há um único exemplo de apelos do género: “Somente a guerra pode levar todas as energias humanas à máxima tensão” (Mussolini); “Só gostamos do sangue quando o vemos jorrar das artérias” (Marinetti, poeta futurista e apoiante do fascismo italiano); “Talvez a morte seja o único acontecimento da vida” (Margenrot, filme de Gustavo Ucicky projectado em Berlim 3 dias depois da nomeação de Hitler como chanceler e assistido e aplaudido por este); “O mais belo aspecto da vida é a morte” (Corneliu Condreanu, líder fascista romeno); “Viva la muerte” (general franquista Millán Astray)., etc. Ao contrário, o movimento comunista sempre se regeu com o intuito de os trabalhadores e os povos tomarem os seus destinos nas suas próprias mãos, o que significou uma tomada de consciência e uma actividade prática em que os agentes envolvidos construíam uma sociedade nova. Evidentemente, existe neste processo tanto um desenvolvimento da racionalização do mundo (quanto mais não seja o desaparecimento da atribuição das condições sociais existentes a factores de ordem natural/inevitável), como um lado afectivo onde o sentimento de pertença a um grupo social (a classe) e político (o partido) transcende em completo a apologia da morte, os hurros animalescos, o obscurantismo, a apologia da força bruta e o anti-intelectualismo presentes nos vários fascismos.
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3) A relação da adesão de trabalhadores, jovens, camponeses, intelectuais, etc. ao ideal comunista não é efeito de uma cultura fanática. De facto, o comunismo não ganha os indivíduos pelo o que eles já são numa sociedade marcada pelo egoísmo e pela fragmentação entre os trabalhadores. O fascismo num grau superior, mas também noutras correntes não-marxistas (democracia cristã, sindicalismo “amarelo”, etc.), apenas ganhou trabalhadores para o seu lado na medida em que nestes se expressavam fortes sentimentos de ressentimento em relação a outros “trabalhadores mais remediados” – para usar uma expressão popular. Ou seja, o fascismo arrebatou massas populares – com particular incidência em sectores da pequena-burguesia e no clássico lumpen – por um lado, politicamente desorganizadas e, por outro, marcadas por uma cultura irracional que apenas colocava ódio contra indivíduos (“o burguês incompetente”, o “capitalista não-produtivo”, “os trabalhadores calaceiros”), em prol da instauração de uma ordem política que preservasse o anterior status quo mas num nível de repressão ainda mais elevado. Nesse sentido, o fascismo servia para reorganizar o cenário das classes sociais, aprofundando a dominação política e económica de um sistema assente na reprodução da lógica da exploração da força de trabalho, a lógica do capital. Inversamente, os Partidos Comunistas ganham adeptos e militantes na medida em que estes, no mínimo a sua maioria, se transformam. Quer dizer, o militante comunista passa por um processo de aprendizagem de si mesmo e dos outros, por um processo de aprendizagem na luta quotidiana em que os valores da solidariedade e do companheirismo com os seus colegas de trabalho e de condição – seja de que parte do mundo forem – o colocam no centro de um complexo processo de auto-consciencialização dos factores sociais determinantes da vida social e política. Que um operário racionalize os mecanismos sobre os quais assentam as sociedades contemporâneas – a natureza de classe do Estado e a exploração capitalista – em termos simples e muito básicos, tal facto é suficiente para demonstrar o processo de aprendizagem por que passa um militante do movimento operário. Não é de todo aleatório que tanto o poema de Vinicius de Morais se tenha intitulado “Operário em construção” (sublinhe-se o termo “construção”) como conceitos de historiadores marxistas como E.P. Thompson para analisar a trajectória da classe trabalhadora tivesse sido cunhado de “formação”. A dinâmica de transformação consciente e simultaneamente colectiva e individual do operariado e dos militantes comunistas é por demais evidente e absolutamente antagónica com o fanatismo religioso e com o irracionalismo bruto dos membros das milícias fascistas.
João Aguiar
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[1] Entre 1960 e 1970, «a característica especial do capitalismo português, comparado com o grego ou o espanhol, era a sua extrema concentração e centralização de capital, particularmente para o seu nível de industrialização: 168 empresas de um total de cerca de 40 mil (isto é, 0,4 por cento) controlavam 53% do capital total do país» (Poulantzas, 1975, p.16). Para este autor, os regimes ditatoriais português, espanhol e grego «seguiram uma política de desenvolvimento industrial paralelo com um processo de concentração e centralização do capital; por outras palavras, uma política de desenvolvimento de relações capitalistas na sua forma monopolista» (Poulantzas, 1975, p.19).
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Bibliografia
BETTELHEIM, Charles (1971) – L’économie allemande sous le nazisme. Paris: Maspero
CUNHAL, Álvaro (1974 [1965]) – Rumo à vitória. Porto: Edições A Opinião
PATRIARCA, Fátima (1995) – A questão social no Salazarismo: 1930-1947. Lisboa: Imprensa Nacional Casa da Moeda.
POULANTZAS, Nicos (1975) – The crisis of dictatorships (Portugal, Spain, Greece). London: Verso
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