Não, não é um poema, nem sequer uma prosa poética. É apenas um mini-conto em simples prosa para quem tiver paciência para algo ligeiramente misterioso.
Um...inspiração, dois, três...inspiração. Não, não! Volta ao início, desta vez sem se esquecer de inspirar na segunda contagem. Segue depois o ritual preciso e metódico do banho diário. Dez minutos para fazer a barba, uso de uma toalha imaculadamente branca, água a jorrar forte e impetuosa de um moderno chuveiro, temperatura testada com o termómetro. Irrita-se com o pequeno vinco que nota na camisa azul. Aquele pormenor retira-lhe a concentração para continuar a vestir-se como faz todos os dias. Uma veia salienta-se na testa alta, enquanto um ligeiro tremor lhe crispa os lábios. Tenta ignorar e seguir em frente. A gravata tem duas pequenas listas que distam uma da outra, um centímetro cuidadosamente medido. De uma certa maneira, saber disso traz-lhe a paz que a descoberta daquele pequeno vinco lhe tirou.
Não gosta particularmente do caminho até ao escritório. Não pode controlar o trânsito e assola-o sempre uma incerteza que o atordoa. Aquele dia parece mexer-lhe com os sentidos e desacertar-lhe os mecanismos oleados com que mede a vida. Olha repetidamente para as horas marcadas no carro, na esperança de que o tempo do trajecto não exceda o normal.
E de repente algo lhe subverte a rotina e ameaça transtornar. O sinal vermelho num semáforo fá-lo ficar parado ao lado de um carro azul. Lá dentro uma mulher de cabelo negro olha-o com um sorriso. Repara no batom vermelho, único sinal de maquilhagem no rosto branco. Desvia o olhar, irritado com o sorriso que ela lhe deita. Por causa disso, a noção do tempo torna-se diferente e o semáforo que conhece de cor, parece-lhe distorcer os minutos que faltam para passar de vermelho a verde. Olha de novo para a mulher e agora o sorriso dela parece ter-se estendido até aos olhos. São azuis, quase da cor do carro, e parecem anzóis a serem lançados. E o sinal não muda e ele quer mas não consegue deixar de olhar para o lado. Quando finalmente arranca, tem um fio fino e penetrante de suor a escorrer-lhe pela têmpora direita. O relógio mostra que o tempo de chegada será respeitado mas a ele tudo lhe parece deturpado.
O dia no escritório corre num nervosismo inexplicável. Aquele acontecimento, não sabe explicar porquê, minou-lhe o dia e fez com que as suas defesas de algum modo se diluíssem e o tornassem inseguro. Não consegue esquecer o sorriso que de algum modo sentiu predatório e o destabilizou.
No dia seguinte refaz todos os passos desde que acorda. Desta vez a camisa está imaculada e de algum modo esse facto transmite-lhe uma paz profunda. Dentro de si instala-se a certeza de que o dia vai correr bem e que as rodas dentadas do mecanismo onde encerrou a vida, vão girar sem entraves. No entanto, à medida que faz o percurso habitual, sente que as pulsações se aceleram. Tenta negar este facto mas sabe, bem lá no fundo, que é a chegada ao semáforo da véspera que o indispõe. E finalmente chega o momento. Desta vez tem um carro à sua frente. Não sabe se há-de ou não olhar para o lado e essa incerteza é irritante. Precisa de controlar todos os aspectos da sua vida e não pode ficar à mercê de imprevistos. Resolve olhar e o carro azul não está lá. Porque deveria estar? Afinal até ao dia anterior nunca tinha dado por ele. Antes de arrancar apercebe-se de que o carro está atrás de si.
O sinal fica verde e ele é obrigado a seguir o fluxo de trânsito sem poder ver quem nele segue.
O dia é passado numa espécie de inferno . O pensamento no sorriso que não viu, faz com que almoce dez minutos mais tarde e desarrume a secretária numa imprecisão que detesta.
Novo dia. Agora todos os processos apesar de seguidos não o sossegam. A obsessão centra-se algures num semáforo que a mente antecipa. Já há um medo palpável que a língua saboreia, um travo metálico ao sangue que galopa nas veias. Desta vez fica em primeiro, pronto a arrancar assim que o sinal mude. Ao lado, um carro preto com um homem de óculos que o olha com desconfiança. Atrás de si, num pequeno carro, uma mulher loura vê-se ao espelho. Um certo desespero tolda-o e sente que a roupa se lhe pega ao corpo. Subitamente a mulher do cabelo negro e lábios vermelhos, atravessa a passadeira. O sorriso que lhe deita é devastador. Por momentos deixa de pensar como se tudo se ausentasse dele e o mundo parasse. Um monumental coro de buzinadelas acorda-o do torpor. Ficou parado e o monstruoso trânsito gritou-lhe a sua indignação.
No trabalho não consegue concentrar-se. Tenta por diversas vezes arrumar o pensamento mas todos aqueles desacertos lhe parecem burlescos e demoníacos. Contra tudo aquilo em que acredita, vai mais cedo para casa, mas até essa mudança de hábitos lhe acirra a mente.
No dia seguinte não consegue fazer as suas inspirações. Mal dormiu mas precisa de se arranjar e sair. Resolve apanhar um táxi e seguir até à zona do famigerado semáforo. Sai e fica junto dele enquanto o corpo treme como que a ressacar um vício. Durante um certo tempo observa rigorosamente todos os carros que ali passam, todas as pessoas que atravessam a passadeira. Nada!
Não consegue ir trabalhar e apanha outro táxi de volta a casa. Toma novo duche. A água não saiu como gosta e a temperatura parece-lhe demasiado quente. Não consegue comer. A garganta parece ter dentro uma garra a apertar cada vez mais. Não entende o que se passa com ele e sente a vida desmoronar. Toma dois comprimidos e adormece com a esperança de que tudo não passe de um pesadelo.
Um...inspiração, dois...inspiração, três...inspiração. No dia seguinte tudo parece estar a correr certo. O duche, a camisa, a gravata, tudo segue os normais parâmetros da sua vida.
No trânsito surge o fatídico semáforo. Não vê a mulher do carro azul. A angústia e o medo começam lentamente a invadir-lhe os poros. Olha desesperadamente para o relógio em busca de refúgio. Encontra nele um pouco de paz enquanto o semáforo lhe indica que pode avançar.
Entra no escritório com passos lentos e contados. Pensa que vai superar aquela obsessão que tão terrivelmente o assolou. Precisa de paz para lidar com o novo cliente que a firma lhe designou e que vai conhecer hoje. Entra na sua sala impecavelmente arrumada.
Sentada na cadeira de couro branco, a mulher de cabelo negro e lábios vermelhos, sorri-lhe implacável.
© Margarida Piloto Garcia.
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Foto da net. Desconheço o autor.