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I – por saber quem sou
Era uma vez o homem original. Ele era um só, e não só mais um. Pelo menos assim se pensava a si próprio. O homem original era feito de pensamentos, palavras, sentimentos. Tentava compreender tudo e todos. Ao Contrário dos “Alberto Caeiros” da vida, o sentir não lhe bastava. O homem original autopsiava cada sensação até à exaustão. Isto não lhe prejudicava em nada o sentir. Pelo contrário. Sentia ainda mais por saber o que, e porque sentia.
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A flor é uma flor e é bonita enquanto tal. O homem original concordava e apreciava a simplicidade existencial das coisas e das sensações por elas causadas. Mas porquê ficar por ali? Ele queria compreender o conceito de beleza. A complexidade das coisas simples. Queria tocar nas coisas que lhe tocavam. Tacteando, cheirando, saboreando, observando, ouvindo, e usando o pensamento enquanto sexto sentido.
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O homem original queria ainda mais. Queria o sétimo sentido, as sete cores do arco-íris, as sete tonalidades do som, os sete pecados capitais, os sete mares, as sete maravilhas do mundo, os seis dias que deus levou a criar o mundo, seguidos do sétimo, no qual Deus validou o nosso direito à preguiça, a contemplação. O sétimo sentido. O sentido da vida.
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Na sua demanda interior, o homem original havia experiênciado inúmeros sentimentos. E de todos eles, o amor era o que lhe fazia mais sentido. Havia decidido que o sentido da sua vida se encontrava no amor original. Estava decidido a encontrar a mulher original. Encontrar um pensamento ao qual juntar o seu solitário. Alguém com quem ver o arco-íris, alguém com quem dançar ao ritmo do som, com quem pecar, navegar, alguém para partilhar as maravilhas do mundo. Alguém com quem criar finalmente o seu mundo e descansar.
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Um dia, o homem original cruzou-se com a mulher interessada. Não era mais bonita nem mais feia que as outras. Nem mais sapiente nem mais ignorante. Não era mais alta nem mais baixa. Era simplesmente “interessada”. E como se a uma flor, o homem original quis compreender o conceito de interesse. E transformou a mulher interessada na mulher do seu interesse. Deu-se, conheceu-se, recebeu-a, ajudou-a a conhecer-se.
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O Homem Humano conhece-se pela genética e pelas experiências passadas. Os acontecimentos que nos fazem acontecer. Pensamos o que os cinco sentidos nos fizeram pensar. É este sexto sentido o que mais me interessa. O resultado dos outros cinco. O que sou. Descartes disse “penso, logo existo”. Entretanto Descartes foi desdito. Eu, presunçoso, digo, penso, logo sei que existo. Quantas são as coisas que sabemos existir mesmo sem elas pensarem? O “saber” e o “existir” são conceitos criados por nós, pensantes. Penso, logo sei que existo. Logo penso outra coisas que penso existir. Sendo presunçoso, não tenho a presunção de outros pensantes que julgam o pensamento colectivo como algo próprio da sua construção individual. Haverá, claro, algo colectivo na procura individual de cada um. O bem-estar. O meu sétimo sentido. É este bem-estar que varia de indivíduo para indivíduo.
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A mulher do seu interesse aparentava ser uma mulher em paz consigo própria, consciente, dona do chão que pisava, sorria, falava, ouvia, facilmente o homem original a prendia ás suas palavras. Dela, o homem original facilmente arrancava uma gargalhada, e com o baixar das defesas, com a mesma facilidade lhe arrancava lágrimas. Por essa altura o homem original tomava consciência de haver uma mulher verdadeira por detrás da mulher mascarada que outrora o entesara. E a mulher forte do seu interesse transformou-se na mulher frágil da sua paixão.
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Esta mulher com olhos de criança, com olhos de quem quer sorver todos os gelados que a vida dá. Tinha nos olhos de facto, o que era por dentro, uma criança perdida, triste e solitária. Esta mulher que a um conhecido casual transmitia uma enorme luz e calor, era de facto assombrada por um interior frio e sombrio. Era uma mulher de facto extrovertida. Mas não porque estivesse em paz consigo própria. Mas porque temia a introversão. Porque as crianças têm medo do escuro e dentro de si ela não conseguia dormir.
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O homem original armou-se cavaleiro seguro de ser capaz de salvar a sua amada princesa do monstro interior que a mantinha cativa. A princípio a princesa cativa acenava da pequena janela da sua torre/prisão e na sua expressão adivinhava-se jubilo e esperança. Também o cavaleiro rejubilava. “O Amor é de facto o caminho! A cura de todos os males! Derrota de todos os monstros”. Á medida que o cavaleiro se aventurava na profunda caverna da alma que enclausurava a princesa esperançosa e apaixonada, o caminho fez-se estreito, e na sua frente, portentoso, se edificava o monstro. O cavaleiro caiu do cavalo! Não podia acreditar! O monstro tinha a cara da princesa. Sem reacção, ficou a mercê das suas garras e dentes. O monstro cuspia fogo com a nítida intenção de quebrar o cavaleiro. Cambaleante e ferido, este não tinha outra alternativa senão recuar. O monstro e a princesa eram na verdade, uma e a mesma entidade. A mulher prisioneira impedia-se a si própria de sair em liberdade.
II – por tentar saber quem és
A mente é um lugar estranho
Que uma aranha macho se sacrifique ao apetite canibalesco da sua fêmea copulada é algo de fácil entendimento. Segue os seus instintos e não possui razão. O seu instinto é a sobrevivência da espécie. O espalhar do seu gene.
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O ser humano ultrapassou essa fase e dotou-se de razão. É agora capaz de raciocinar o passado e antever o seu futuro. É nesse sentido que esta nova faculdade me fascina e ao mesmo tempo deprime. A nossa mente – quem nós somos – trabalha não raras vezes a nosso desfavor. Qual a lógica que faz com que um menino abusado sexualmente em criança tenha mais tendência em tornar-se um adulto pedófilo? Porque uma menina abusada sexualmente tem tendência a tornar-se uma mulher promíscua e incapaz de amar? Porque uma criança com falta de amor há de ter dificuldade em receber amor enquanto adulta? Porque um menino que assista ao pai maltratar a mãe tem mais tendência a maltratar a sua futura mulher? Porque uma mulher maltratada tem tendência a optar sempre por homens que as vão maltratar? Porque nos armadilhamos a nós próprios? Se temos a capacidade de pensar. De quebrar ciclos. Porque recusamos a cura para a nossa doença e em vez disso continuamos nós próprios a alimentar-nos de veneno?
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Usando a analogia de Freud. Compreendendo o nosso mundo interior – o nosso “eu” – como um iceberg muito mais submerso do que emerso. A razão para as minhas questões anteriores estarão sem dúvida na parte submersa de nós prórios.
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Aquando das teses de Freud, este não contava seguramente com um mal dos nossos tempos. O aquecimento global. O degelo dos pólos. A parte emersa dos icebergs é cada vez menor. A nossa consciência diluí-se num oceano a que podemos chamar consciência global ou pensamento único. Temos então duas opções para manter a nossa individualidade face ao chão que nos desaparece dos pés. O homem original escolhe mergulhar e conhecer a sua enorme parte submersa. A sua e a dos icebergs que com ele se cruzem. Conhecer os seus medos, os seus desejos, os seus comportamentos e consequências. Raciociná-los fazendo assim com que esse belo pedaço de gelo venha á superfície, aumentando assim o espaço em que este conscientemente se move. É mais fácil controlar os nossos instintos quando compreendemos porque os temos. A mulher prisioneira do seu passado tem demasiado medo de mergulhar e enfrentar os seus processos interiores. Escolhe sim fugir de si própria. Se a consciência lhe foge debaixo dos pés, esta faz-se ao mar no barco da ignorância. Assim como Freud não previu o aquecimento global. A mulher fugitiva também não conta com a extinção dos combustíveis fosseis. E acabando o combustível da ignorância, fica perdida á deriva sem gelo consciente para pisar. Ocasionalmente chocando com icebergs circundantes. Assim encontrou o iceberg do homem original onde este já construía casa e mobilava o seu espaço renovado, revisto e aumentado. Este convidou a sentar-se na sua consciência. Era confortável e quentinha. A mulher fugitiva gostou. Há muito tempo que andava á deriva e não pousava “terra” firme. Bebeu um cházinho e aqueceu-se na fogueira dos sentimentos do homem original. O homem ouviu as estórias da mulher e ofereceu-se para a bordo do seu barco do amor procurarem o iceberg perdido da mulher e juntos mergulharem para trazerem á superfície um espaço próprio e consciente para esta. A mulher cuspiu o chá. E olhou o homem em pânico. “Mergulhar em mim? Perceber-me? Barco do amor? Parar de andar á deriva? E se não gosto do que lá sou em baixo? E se não consigo voltar á superfície?” levantou-se e numa corrida zarpou novamente para o mar colectivo a bordo da sua ignorância, ao sabor dos ventos e correntes. O homem original não podia permitir tal loucura. Como sobreviveria ela naquela embarcação pequena, esburacada e de madeira inchada pelo tempo? Era suicídio. Ele não seria testemunha ou cúmplice por inacção do afogamento desta linda mulher que perdida havia encontrado o seu iceberg. Içou as velas do seu majestoso e bem construído barco do amor e perseguiu a mulher conformada com o seu destino ah deriva na ignorância. “mulher” gritou o homem “vem para bordo do meu amor. Não temos que mergulhar já
III – por ter que perceber um fim
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Setúbal 2008.01-15
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