desenhos de Gilberto de Oliveira
foto Victor Nogueira
Eu e Gilberto de Oliveira fomos amigos e visitei-o muitas
vezes na sua casa, na Ajuda, em Lisboa, na Rua Dom Vasco. Foi membro do Comité
Central do PCP e prisioneiro no Campo de Concentração do Tarrafal, sobre o qual
publicou nas Edições Avante a “Memória Viva do Tarrafal “ (1ª edição
1987). Já cego, ajudei-o a compilar e a fixar o texto da sua poesia. Na
efeméride da criação do chamado “Campo da Morte Lenta” partilho a sua poesia
anterior e coeva das suas prisões, a 1ª das quais ao 18 anos. Gilberto de Oliveira,
já falecido, nascera em 1915.
Nota - Os poemas " Marteladas
Sinistras", "Salvé, indomável Exército Vermelho", "No céu
as núvens, em densa atmosfera" e "Resistir" figuravam no
texto primitivo do livro Memória Viva do Tarrafal, donde o autor os
retirou na versão que veio a ser publicada.
A Minha Resposta
Vinte e seis dias já, há quasi já um mez.
Que vim para este templo de pensamento.
E o tempo, oh! ... maldito passa lento;
Olhando p'ra mim, com super altivez.
Mas não julgues que com isto burguesia
Meu espírito fica amedrontado.
Pois me sinto 'inda mais revoltado.
Por desvendar aqui , a tua hipocrisia.
É com a prisão burguês, que te defendes?
Do operário que quer a liberdade!?
Sim, é isso certamente, o que pretendes.
Mas vêde bem, oh burgueza sociedade
O povo já sabe que por base só tendes
A infâmia, a fraude, a falcidade.
1933.08.03
Lisboa ([1])
À Burguesia
Oh vil burguesia, imérita velha traiçoeira.
Com teus vestidos, de rapariga, jovem atraente.
Consegues iludir do povo, ainda alguma gente.
Que inconsciente vai caindo na tua ratoeira.
E como qual réptil, na sombra vais rastejando.
Sem cantar vitória, pois te sentes já moribunda.
Sim é agora o teu fim, oh sociedade imunda.
É a invencível morte, que p'ra ti vai avançando.
E representada, a tua morte é, p'lo fascismo,
Consequência única, do fim do teu império.
E então darás lugar, eternamente, ao Leninismo.
A esse ideal puro e justo sem vitupério;
Que edificará na terra, p'ra sempre o Socialismo;
Que a humanidade unirá, num amor eterno.
1933.08.04 Lisboa
Cessem teus males, oh sociedade viciosa!
Que só da fraude vives, do engano e da maldade.
Tuas armas são: uma a taberna perigosa;
A igreja, antro d'hipocrisia e falsidade;
E a outra é o prostíbulo, casa venenosa.
Só com isto te sustentas, maldita sociedade.
Cantando o divulgarei para toda a gente.
Se para isso me ajudar o povo consciente.
1933.08.06 Lisboa
Marteladas Sinistras
Mais marteladas sinistras ...
... ecos de morte na noite
no Vale da Achada Grande ...
mais um caixão se fazia,
pois outro preso morria.
Quando algum não urinava
por biliosa fatal,
era a morte que rondava
os presos do Tarrafal.
As próprias vítimas presas,
com a dor no coração,
socorriam‑se das mesas
fazendo mais um caixão.
Na mágoa que a noite cobria
p'las marteladas ouvidas,
nenhum preso ali dormia ...
... angústia e dor repetidas.
Noite e dia acompanhado
pelos companheiros de então,
por turnos era velado
até sair o caixão.
Mais uma mesa faltava,
Mais uma cruz de cimento,
Mais um preso que afirmava
no cemitério local
o combate tão cruento
dos vivos do Tarrafal.
......
No céu as nuvens em densa atmosfera,
premendo" os montes, o horizonte, a vida,
á mais angustiante, funesta e deprimida
das existências que nos dilacera.
No chão o lixo - que vergonhoso era! -
em pó, em ossos, em erva ressequida,
medrando a esmo, como enlouquecida
fecundação de torpe primavera.
Por fauna, aves negras e guerreiras
de garra adunca e bicos de morder,
só rapinando em lutas traiçoeiras.
Por flora apenas, ainda por crescer,
quase mortais, raquíticas purgueiras ...
e nada mais que se pudesse ver. ([3])
Na Frigideira ([4])
Vinte, quarenta e mais dias a pão e água.
Sem cama para dormir
Sem cinto nas calças e descalços.
Água para lavar a cara não havia,
pois que para beber não chegava.
A sede apertava bocas secas, gargantas ressequidas.
Óculos de miopia eram tirados.
No cimento, todos nus, se dormia.
Areia no corpo se enterrava e feridas fazia.
O calor, lá dentro, insuportável.
Ar não havia; o suor pelo corpo e pelas paredes escorria.
O latão, fedorento, para cagar e mijar,
uma vez por dia era despejado e não lavado.
Por todo o lado muita e muita porcaria.
No corpo, enegrecido, a imunda crosta fazia.
Na podridão se sobrevivia ...
Aos vinte, quarenta e mais dias a pão e água,
daquele antro se saía sem se poder andar,
trôpego, enfraquecido, barba crescida,
do corpo mau cheiro saía,
seguido por alguns esbirros,
entrada no campo de novo se fazia ...
O cão Bobi
Bobi, era esse o seu nome
o cão amigo dos presos do Tarrafal
Por estes ele era estimado
Mas pelos guardas mal tratado
e por eles assassinado
Fora do Campo Bobi foi ferido
pelas balas traiçoeiras do José Maria
Ensanguentado no Campo se refugiou
Pelos seus amigos presos foi tratado
e por eles igualmente acarinhado
E se raiva Bobi já sentia
pelos guardas seus inimigos figadais
Rosnando, mostrava os dentes então
Pronto a morder quem tentasse
tirar‑lhe a vida á traição.
Mas o seu destino estava traçado
e o fascismo não perdoa, nem sequer a um animal
e tal como os seus amigos presos,
também ele, Bobi, foi uma vítima
do Campo de Concentração do Tarrafal.
(...)
Salve! indomável Exército Vermelho
glória dos trabalhadores
unidos em todo o mundo
no combate contra o mal,
que altivamente, sem ódio,
mas sem quartel,
cavaste um fosso profundo
entre o passado e o futuro.
Fosso rasgado com aço ...
... aço temperado no fogo da luta!
Aço que fere e mata ...
Aço que cria ...
... que cria as flores vivas
de uma nova Primavera ...
... a Primavera das flores da Vida!
Tarrafal
Novembro de 1944 ( [5])
[1] - Este poema e os dois seguintes foram escritos nas
paredes da prisão de Belém.
[2] - São três sonetos escritos na prisão, em Angra do
Heroísmo, em 1933.11.25
[3] - No outro dia, véspera da anunciada chegada
do "Guiné" em que embarcaríamos com destino ás nossas terras,
passámos o tempo a passear - eu e os meus dois companheiros de saída antecipada
- circundando as proximidades do Campo para além das zonas nossas conhecidas,
isto é, a zona das pedreiras, bem como do lado oposto, a da praia do Chão Bom,
onde fomos fazer uma última despedida aos nossos camaradas que ficavam no
cemitério do Tarrafal. A sensação que me ficou desse passeio foi tão triste e
desoladora pelo que vimos de miséria nos raros sítios habitados pelos
indígenas naquela faixa da ilha que, ainda hoje evocando a desolação da vida
daquelas gentes, a pobreza dos quase buracos em que habitavam e das refeições
cozinhadas ao ar livre sobre simulacros de fogo alimentado com bosta seca
colhida pelos caminhos, o seu muito sofrimento que se imprimira no meu
espírito durante aqueles anos vividos em amarga aridez, traduzi nestes versos.
[4] - Tudo isto se passou na masmorra da
Frigideira com os antifascistas presos no Campo da Morte Lenta do Tarrafal
[5] - Poema dedicado ao Exército Vermelho, no aniversário
da Revolução Russa, em Novembro de 1944, poema que depois foi lido, quase
declamado, pelo Alberto de Araújo, durante uma festa que então realizámos.
Nesse poema era glorificado o Exército Vermelho e sobretudo a resistência
organizada e espontânea do povo soviético á penetração territorial das hordas
fascistas. Dele, que se me varreu da memória quase por completo, só consigo
recordar com muito pouca segurança o passo final, aqui transcrito.
A história da “Colónia Penal de Tarrafal” começou verdadeiramente depois de 18 de Janeiro de 1934. É nesta data que, com a agudização da luta de classes em Portugal, o regime salazarista sente a necessidade de uma repressão mais dura que a situação política na Alemanha e na Itália encorajava. É bom lembrar que em Cabo Verde, mais concretamente na Ilha de S. Nicolau, já existia um Campo de Concentração que servia para o degredo, maioritariamente dos oficiais do exército detidos na Revolução da Madeira de 1931.
A pena do degredo já existia há muitos séculos na legislação portuguesa e Cabo Verde não foi o primeiro território do degredo português. Foram para Ceuta alguns portugueses em 1434 e 1450, e mais tarde, em 1484, foram enviados para S. Tomé e Príncipe alguns portugueses considerados perigosos para a manutenção da ordem na Metrópole. Antes das prisões de Cabo Verde, o Decreto-Lei de 17 de Fevereiro de 1907, criou em Angola uma Colónia Penal militar. Contudo, o Campo de Concentração na Ilha de S. Nicolau e também os campos de concentração alemães, principalmente o de Dachau são apresentados por muitos, principalmente pelos presos que estiveram no Tarrafal, de certa forma como o antecedente que justifica a criação daquilo que uns designam por Colónia Penal e outros por Campo de Concentração de Tarrafal. Esta afirmação tinha como base a utilização para a sua instalação provisória dos mesmos meios e materiais que eram destinados aos referidos campos. De igual modo, as características e modos arbitrários de detenção dos indivíduos eram idênticas às de Dachau.