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terça-feira, 17 de julho de 2012

Antunes Ferreira - Conversas de funeral


DOMINGO, 27 DE MAIO DE 2012


NÃO HÁ DUAS SEM TRÊS
A minha Travessa do Ferreira
Conversas de funeral

Antunes Ferreira
Dois jazigos enormes ladeiam a entrada do cemitério do Alto de São João. Enormes e trabalhados, sendo que o da esquerda para quem entra é uma mistura de pseudos: gótico, manuelino e barroco, parente espúrio de qualquer deles. Pelo resto afastado do campo-santo abundam outros, com mais mármore ou com mais lioz a fingir daquele. Há ruas – a denominação é mesmo essa – pejadas dos sarcófagos mais rebuscados, há campas que ostentam as mesmas pedras. O conservadorismo reina de mãos dadas com o tradicionalismo.

Há, porém, no meio da floresta pétrea, uma nota modernizante: o crematório, que ostenta na fachada interior um solene e perfilado CREMATORIUM. Predomina o metal, pintado a vermelho escuro a cair para o castanho de igual tonalidade, avulta o vidro amplo que contradiz as fenestras estreitas dos edifícios mortuários que o circulam e que lhes dão o esconso das coisas vesgas.

Os administradores de cemitério, nome atualizado dos coveiros, estas denominações de caráter profissional são, por vezes, difíceis de entender, um contínuo nos dias de hoje é auxiliar administrativo, um almeida aspira a ser agente de manutenção da limpeza pública, ainda não é, mas lá chegará, a criada passou a empregada doméstica, os gestores de cadáveres gostam do forno, não suja as mãos, não cansa o antiquado cavador camarário. Modernices. Mas é prática muito mais higiénica e muito mais lucrativa para as agências funerárias.

Cheiro a esturro...
Juvenal está defronte do incinerador, entre um estendal de coroas e ramos de flores, com as respetivas fitas à memória do Jaime Santos Reboredo, dos colegas de trabalho da Fábrica de Parafusos de Montemor, (alias Xuan Giping local da verdadeira produção, RPC), para o meu saudoso marido e pai extremoso, com a mágoa da Ermelinda, do Francisco, do Manuel e da Rita. Não haverá campa que as acolha, Juliano fica apensar para onde irão, ainda que já um tanto murchas.

O jovem é amigo de um primo da cunhada do falecido e por via disso, foi ao funeral, depois de passar ao de leve, pelo velório. Nem sequer conhecia o de cujus, os juristas usam o termo erudito, latinório mas de significado um tanto misterioso para os leigos, porém a irmã da viúva é figura importante do partido que governa, técnica superior da Função Pública e ele é apenas um trabalhador da Administração, operador de computação, no antecedente dactilógrafo, mais a mais em princípio da carreira.

Portanto, diga-se em abono da verdade, a cara de sofrimento contido que arvora nada tem a ver com o corpo que o caixão sem metais encerra. Pensa, no entanto, que devia ser bom homem, bom chefe de família e benfiquista – no tempo da outra senhora dizia-se que um dos atributos decorria do outro – pois a bandeira dos encarnados, continua a dizer-se assim, nesses anos da ditadura vermelhos eram os comunistas, cobrira o féretro até à chegada ao forno.

Um padre encomenda o cavalheiro, enaltecendo as muitas qualidades que tinha, incluindo a de bom cristão, temente a Deus e de prática religiosa, mas igualmente excelente líder do agregado familiar, abnegado trabalhador e cidadão cumpridor de todas as obrigações. O sacerdote fala português, mas com um acento espanholado, su família diz, e vê-se que está apressado, outros quefazeres o chamam, quem sabe um batizado, a vida é uma sucessão imparável.

No entanto, adita Juvenal, quando uma criança nasce começa a contagem decrescente para a morte. Ouviu a afirmação da boca do Dr. Aurélio, o seu diretor, e guardou-a a sete chaves nas meninges, porque é muito boa. Já o Carinhas, companheiro dos copos (não muito exagerados), conta a estória do sujeito que mandou fazer justamente um jazigo em forma de mulher jacente, cuja entrada se processava entre as pernas dela, arqueadas. Com um letreiro gravado: «O bom filho à casa torna». Gostos.

... tipo Fernando Mendes, mas careca
É neste preciso momento que um assistente gordo que usa suspensórios por baixo do casaco como o Fernando Mendas, mas sem cabelo, porque abusa de uma careca reluzente, lhe pergunta se é o filho do Januário Manteigas, pois que é muito parecido com ele. Sou, para ser mais correto sou o órfão dele, o meu nome é Juvenal Rosmaninho Manteigas, Rosmaninho é da minha mãe que felizmente ainda está viva, com boa cabeça e boa vista, só um bocadinho a atirar para surda, mas pouco.

Folgo muito, responde o perguntador, o seu pai e eu fomos da direção do Sporting de Vila Seca, ficámos muito amigos, não sabia do seu falecimento, os meus mais sentidos pêsames extensivos à Senhora sua mãe, se bem me recordo a Dona Adelina. Isso mesmo, sem tirar nem pôr, já agora agradecia que me dissesse o seu nome para lhe comunicar este encontro, o Mundo é realmente muito pequeno, cabe na palma da mão, os Espanhóis dizem el Mundo es un pañuelo, um lenço, compreende?

O confabulador avança com um já o seu pai era um apreciador do castelhano e, sobretudo das castelhanas, ainda que uma parte delas fosse espanholas de Carcavelos. Riram-se os dois, da pilhéria, e de dentro do edifício veio um varão engravatado que lhes disse para falarem mais baixo e deixarem-se de risos, o sacerdote ainda estava a perorar e as pessoas não só se distraíam como não sabiam a quem deviam ouvir. Pedem desculpa, não se tinham dado conta do dueto a duas vozes, emendam-se já.

No tempo das repúblicas
      Para que não haja mais atropelos ou advertências afastam-se para o portão da entrada, aqui já não molestam ninguém. O senhor faz agulha para outros carris, isto de nuestras hermanaslembra-lhe sempre que estudou em Coimbra, viveu na Praquistão, uma Real República com uma ganda pinta. E havia uma criada a Mercedes, badajoziana, feia como os trovões mas com um corpo de sereia, que à noite, à convocatória dos alunos, hoje vens dormir comigo, respondia, plácida e conformada, mas sem muito salero «Señor doutor llevo el saco del pan enfiado en minha cabeza o lo dejo aquí?». Olha cachopa, traz o saco mas vem despidinha, que o que é bom é pra se ver…, o que ela cumpria religiosamente.

      Moderam o riso para sotto vocce. Amigo, posso trata-lo assim?, por quem é, amigos dos nossos pais nossos amigos são, aqui tem o meu cartão de visita. Emanuel Sarzedas Inácio, um criado às suas ordens. E por baixo do nome alinha-se em cursivo bonito e centrado, Jurista e ProfessorJuvenal não quer ficar atrás, mas não traz cartões, não é desculpa é falta de cuidado, porém escreve nas costas de um papel do Multibanco, depois de riscar o montante do pagamento na outra face, o nome e os restantes dados.
   
Curioso o encontro e o paleio. De novo acontece a mudança de rumo, o prior vai ainda predicando em luso castelhanês, que coincidência, cá fora a falarem de castanholas e lá dentro a discursar um cantaor. E Juvenal, ainda hoje li num jornal que a Igreja Católica não se opõe à cremação, mas «proíbe» aos seus fiéis de deitar as cinzas do corpo humano à terra, ao mar ou ao vento, defendendo ser essencial conservá-las «com dignidade». E o local mais indicado, de acordo com a agência Lusa, e segundo o novo Ritual para a Celebração das Exéquias da Conferência Episcopal Portuguesa, será «um nicho ou um columbário». O senhor doutor sabe o que é um columbário? O causídico também não sabe.

A urna a caminho do forno
Acabou a encomendação, já entrou a urna no forno, e vai-se afastando o pessoal depois de cumprimentar a família, sentidos pêsames, é a única coisa que temos certa na vida, conformação, é nestes dias que nos encontramos, já não nos víamos há um ror de tempo, melhor seria em casamento do que em exéquias, mas a vida é madrasta. O jurista Inácio tem, ainda, algo para dizer, não é um pleito mas é apenas um episódio, dizem que verdadeiro, sabe-se lá.

Juvenal, que já dera corda às sapatilhas, sustem o ímpeto, venha a estória. Saiba você que nos meus tempos de Coimbra se contava que dois alunos à porta co cemitério e a altas horas da noite comentavam em tom pouco respeitoso o falecimento de um catedrático que, em breves palavras, teria sido uma besta e um salafrário, um biltre, um pulha, um vampiro.

E logo saíra um desafio: o que o malandro merecia era que lhe enterrassem uma estaca na tumba, remédio santo para quem quer ser um Drácula de trazer por casa. Eu ia lá, mas está escuro. Aposto que não eras capaz. Era sim senhor. E logo contrataram cinquenta mil réis, que, na altura era dinheiro, um copo de três valia cinco tostões, uma sopa de nabiças chegava aos oito.

Na noite seguinte, ei-los de volta, com a acha e o martelo necessários para o efeito. Um ficou à porta do sepulcrário, o outro saltou o muro. Passaram-se uns minutos e o aventureiro não voltara ainda. Mas que raio estará o gajo a fazer? Meia hora e nicles. Se calhar já saiu pelo lado de trás, vou mas é para a cama, já são duas da matina, amanhã falo com ele.

Todavia não falou. Porque de manhã, quando o cemitério foi aberto, deram com ele mortíssimo, junta à campa do Professor, com uma estaca enterrada no chão, mas com a capa da batina presa pelo pau. A autópsia resultara em ataque cardíaco fulminante. O tipo não resistira ao que devia ter pensado que era o sacana do mestre que o havia filado.

Eu não sou o infante...
Juvenal vai apanhar o autocarro, mas o jurídico não permite, ele dá-lhe boleia, por favor não se incomode, é um pulinho e hoje há menos trânsito, o preço da gasolina está no alto, a crise. Nada, nada, foi um prazer mútuo terem-se conhecido, então deixa-me por favor na Picheleira, já a caminho das Olaias, vou dar a novidade à minha mãe, ela há de gostar, pela certa que sim. Do nosso encontro, é claro. Não senhor Doutor, da estaca no túmulo, ela pela-se por filmes de terror, não perde um na televisão. Só depois virá o nosso descobrimento. Eu não sou o Infante Dom Henrique.


 

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